E respeitem a rede estadual de São Paulo!

Por José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP

 11/08/2023 - Publicado há 9 meses
José Marcelino de Rezende Pinto – Foto: Arquivo Pessoal
A rede estadual de ensino de São Paulo tem uma longa história e foi responsável pela formação de boa parte do povo paulista. Seus característicos grupos escolares ou ginásios (joias arquitetônicas) são referência em quase todas as cidades do Estado e forjaram grandes lideranças do País. De caráter inicial elitista, em especial em seus ginásios, com os temidos exames de admissão e vestibulinhos, ao longo do século 20 foi se democratizando, ampliando suas matrículas no ensino fundamental e médio.

Esse crescimento, contudo, foi feito à custa da ampliação dos turnos escolares (chegando a três turnos diurnos na década de 1980) e da desvalorização da carreira docente. Já se vão os tempos em que os professores e professoras eram os “bons partidos” nas cidades do interior, com salários que ladeavam com os promotores. Essa deterioração da rede, contudo, acentuou-se nas últimas três décadas, com um conjunto de intervenções danosas, com diferentes secretários de Educação, cada qual com sua fórmula milagrosa para resgatar os tempos áureos do passado. O resultado foi um desmonte desta rede que, de 6,4 milhões de alunos, em 1995 (com 90% da matrícula do ensino fundamental público), caiu para 3,7 milhões, em 2022 (com apenas 45% da matrícula do ensino fundamental público).

Mais grave, esse processo de transferência de matrículas para as redes municipais foi concentrado nos anos iniciais do ensino fundamental, de tal forma que essas redes respondiam, em 2022, por 75% do total das matrículas. Assim, para concluir o ensino fundamental, boa parte dos estudantes paulistas deve percorrer escolas distintas de redes de ensino também distintas, tornando muito mais complexa a garantia de uma trajetória escolar de sucesso.

Ora, para combater a fragmentação provocada exatamente por essa política equivocada, desde 2008 a Secretaria Estadual de Educação passou a se valer das famigeradas apostilas. O começo do processo foi tão canhestro que chegaram a apresentar um mapa da América do Sul com dois Paraguais. Isso quando o Brasil possui o PNLD, um dos mais antigos programas federais, cujas origens remontam a 1937, com a criação do Instituto Nacional do Livro. Trata-se, assim, de um programa com uma longa história, que foi se consolidando ao longo dos anos e que, não obstante seus problemas (como o lobby das editoras, a concentração do mercado editorial etc.), tem como principal característica um cuidadoso controle de qualidade das obras disponibilizadas, feito por comissões de especialistas nas respectivas áreas, e a participação dos professores na escolha das obras que utilizarão nas escolas em que atuam. É contra esta “liberdade de escolha” que se voltam os defensores das apostilas e os secretários de Educação de plantão.

O mais recente deles é Renato Feder, sem qualquer trajetória profissional ou acadêmica no campo da educação e cuja realização intelectual mais em evidência é o livro Carregando o Elefante, em coautoria com Alexandre Ostrowiecki, obra, segundo os autores, dedicada “ao dinheiro, símbolo da criatividade humana”. Depois de triste figura na rede estadual do Paraná, estado do qual foi secretário da Educação entre 2019 e 2022 e onde, para reduzir custos, implantou ensino técnico em forma remota (“televisão assistimos em casa!”, reagiram os estudantes), veio trazer sua alquimia para a maior rede de ensino do País.

Sendo empresário da área de insumos de informática (Multilaser, que só entre 2021 e 2022 recebeu R$ 192 milhões do Governo de São Paulo), obviamente, tem como seu fetiche a tecnologia. E, para economizar (reduzir o peso do tal elefante), resolveu acabar com as apostilas impressas e, além disso, abrir mão do PNLD, que envia livros gratuitamente (pagos via impostos) para todas as escolas públicas do Brasil. Agora é tudo no digital, e se os alunos não tiverem equipamentos, o governo (o tal elefante) compra, ou então os alunos que se virem.

Ante a reação de indignação geral, o senhor de grandes convicções voltou atrás, por ordem do chefe e já com o Ministério Público em seu calcanhar. Mas continuou fazendo das suas, alegou a superioridade das apostilas por ser material consumível, no que o “aluno escreve, grifa, anota, rabisca”, ao contrário dos livros do PNLD que são reutilizáveis. Ou seja, o vício vira virtude e o despreparo do titular da pasta da Educação fica evidente.

As pesquisas no campo da educação do mundo todo mostram que o fator central para o aprendizado dos estudantes é a qualidade dos professores. A rede estadual de São Paulo paga um dos piores salários do País, reduziu a pó a carreira docente e possui mais de 40% de seus professores na condição de temporários.

São Paulo não precisa de apostilas, mas de resgatar a dignidade de seus professores.

Uma explicação final para a posição do secretário talvez esteja em seu já citado livro, onde defende “abolir todos os governos estaduais” e “privatizar todas as escolas e universidades públicas”. Ou seja, ele pegou carona no elefante, mas só para destruí-lo. O povo de São Paulo não merece isso.

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