A confusão entre “superávit” e “reservas” – O suicídio político de um governo

Por Osvaldo Novais de Oliveira Junior, professor titular do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP

 29/09/2020 - Publicado há 3 anos
Osvaldo Novais de Oliveira Jr – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
A importância do conhecimento para o bem-estar de um povo é reconhecida por políticos, organizações civis e imprensa em qualquer país, independentemente dos regimes de governo e de ideologias. Investimentos em ciência e tecnologia tornaram nações ricas. No Brasil, o Estado de São Paulo é o que mais investe em universidades, ciência, tecnologia e inovação. Não por acaso, o Estado que gera quase metade da produção científica do Brasil é hoje o Estado mais rico da federação. Contribuíram para essa conquista a criação da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e a autonomia das três universidades estaduais, Unesp, Unicamp e USP. Neste momento difícil com a pandemia da covid-19, a resposta das universidades com o apoio da Fapesp é indicativa dos benefícios desses investimentos trazidos para a sociedade.

Causou perplexidade o projeto de lei 529 (PL 529), enviado pelo governador João Doria para apreciação da Assembleia Legislativa do Estado (Alesp), pois essa iniciativa vai de encontro ao discurso do governador, que tem sido de valorização da ciência e de pautar as decisões do governo sobre a pandemia com base no conhecimento. Pois o PL 529 atinge a autonomia das universidades e da Fapesp, e pode gerar tal desarticulação no sistema de ensino superior e de pesquisa no Estado que chega a ser inacreditável. Segundo o artigo 14 do PL 529, o superávit financeiro das universidades e da Fapesp seria recolhido aos cofres do Estado ao final de cada ano fiscal. O problema é que, como explicarei a seguir, não se trata de superávit, mas de reservas que essas instituições precisam ter para executar projetos de longo prazo e honrar restos a pagar do exercício fiscal anterior.

O objetivo divulgado do PL 529 é justificável, qual seja o da introdução de medidas de austeridade para enfrentar a queda de arrecadação devido à pandemia. É justo que toda a sociedade contribua com sua parcela de sacrifício, e de fato isso ocorrerá inevitavelmente com as universidades, que recebem aportes proporcionais à arrecadação. Assim, o necessário ajuste que as universidades estão tendo que fazer já embute sua contribuição. O mesmo se aplica à Fapesp, que recebe 1% da arrecadação do Estado, e também está fazendo ajustes. Num cenário ideal, em momentos de crise econômica deveríamos aumentar os investimentos em ciência e tecnologia para acelerar a recuperação no médio prazo, mas almejar isso diante de um governo que propõe o PL 529 é sonhar demais.

Como se poderia esperar, o PL 529, particularmente o artigo 14, tem recebido muitas críticas. Talvez a mais importante seja a de que é inconstitucional. Não é razoável uma lei ordinária abrigar um subterfúgio que inviabiliza a autonomia das universidades públicas e da Fapesp. Muitos lembram também a quebra do compromisso do governador João Doria em preservar e fortalecer a Fapesp. Essa lembrança está relacionada a um vídeo divulgado pela senadora Mara Gabrilli antes do segundo turno da eleição de 2018. No vídeo, o então candidato João Doria se compromete a manter a independência da Fapesp, que tinha sido atacada pelo vice-governador e opositor na eleição. E mais, que a Fapesp seria fortalecida com recursos adicionais àqueles transferidos do tesouro do Estado.

Além de concordar com as críticas acima, eu gostaria de acrescentar uma análise de algo que me surpreendeu. Refiro-me à pouca inteligência na concepção do artigo 14 do PL 529. Qualquer pessoa sabe que se precisarmos de dinheiro devemos buscá-lo onde ele exista. E esse não é o caso das universidades estaduais paulistas. O governo do Estado deveria saber que essas universidades têm tido déficits nos últimos anos devido à recessão e queda de arrecadação. A USP, por exemplo, teria um pequeno superávit em 2020 após vários anos de déficit, se não fosse pela pandemia. No novo cenário com a queda de arrecadação, o mais provável é que 2020 ainda seja deficitário.

Se há déficit, como o governo do Estado “achou” mais de R$ 1 bilhão, considerado como superávit, ao final de 2019, e que agora tenta retirar das universidades? Ora, esses são recursos de reservas para honrar compromissos já assumidos em 2020 ou mesmo em outros anos para projetos de mais longo prazo. É como uma família que não gasta todo o décimo terceiro em dezembro, porque sabe que precisa pagar impostos no janeiro seguinte e terá que adquirir algum bem meses depois. A existência desses R$ 1 bilhão não quer dizer que as universidades arrecadaram mais do que gastaram e investiram em 2019. Quer dizer que recursos ficaram em caixa para salários e investimentos em 2020, da mesma forma que no início de 2019 havia reserva oriunda de 2018. Uma análise similar pode ser feita para a Fapesp, que tem investido praticamente tudo que arrecada a cada ano, principalmente com a queda de arrecadação já mencionada. A Fapesp tem reservas para projetos de longo prazo, sendo que esse fundo de reserva remonta à iniciativa do governador Carvalho Pinto.

Se o PL 529 passar, no curto prazo as universidades não terão como honrar compromissos, provavelmente não conseguirão pagar salários e décimo terceiro em dia. No médio e longo prazo não terão como planejar seus investimentos, com a consequente piora na gestão desses recursos públicos. Será na prática o fim da autonomia, e um retrocesso de décadas. O mesmo se aplica à Fapesp, cuja autonomia não foi atacada nem no governo militar.

Em sua defesa, o governo do Estado de São Paulo tem afirmado que as atividades de ensino e pesquisa não serão afetadas. Que o dinheiro recolhido pode ser usado para pagar aposentados das universidades. O argumento é frágil por dois motivos: i) são as próprias universidades que pagam seus aposentados, de forma que não faz sentido retirar o dinheiro e depois devolvê-lo quando as universidades precisarem (o que certamente acontecerá); ii) a aritmética é implacável, e não há como não interromper atividades se as universidades perderem recursos adicionais num ano em que serão deficitárias. Quanto à Fapesp, estima-se que perderia no confisco dessas sobras de 2019 quase metade do valor que investe num ano. Como não afetar o fomento de pesquisa se a Fundação, de repente, ficar efetivamente com metade do que disporia?

Desprezar o valor do conhecimento apesar do discurso de valorização da ciência, tentar retirar dinheiro de onde não tem, inviabilizar o funcionamento da Fapesp, Unesp, Unicamp e USP, de uma só vez, é o que posso chamar de suicídio político de um governo. O ato ainda não foi cometido, e espero que o suicídio não se efetive.

 


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