Antonio Candido, a literatura, a cidade: uma homenagem

Marisa Midori Deaecto é professora do Departamento de Editoração da ECA

 18/05/2017 - Publicado há 7 anos
Marisa Midori Deaecto – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Há uma história da literatura que se projeta na cidade de S. Paulo; e há uma história da cidade de S. Paulo que se projeta na literatura.

Antonio Candido

 

Antonio Candido, esse grande brasileiro, era carioca de nascimento, mineiro por temperamento e um paulista vocacionado a transformar e a compreender a cidade, em seus diferentes âmbitos. Esse “grande homem das letras e da justiça”, como bem o definiu recentemente Walnice Nogueira Galvão, foi partícipe de uma geração que desbravou São Paulo, ampliou seus horizontes culturais e vivenciou os momentos decisivos de sua viragem política pelo operariado.

Comecemos pelo endereço mais óbvio: a Rua Maria Antonia, na Vila Buarque, no coração da Universidade de São Paulo. Embora nos primeiros anos a USP tenha funcionado na Praça da República, a FFCL não demorou a promover uma recentragem cultural da velha São Paulo, fortemente marcada pela cultura jurídica, no Largo de S. Francisco. Instalou-se em uma área nova e dinâmica, que se abria para a radial do café, no bairro dos Campos Elíseos, não deixando, todavia, de perder seu vínculo com a região central, sobretudo com a Biblioteca Mário de Andrade, uma instituição viva na memória de alunos e professores da antiga USP.

Dentre seus escritos e relatos, podemos surpreendê-lo na luta aberta e renhida contra os integralistas, no Teatro Municipal. Na Praça da Sé, na luta pela democratização, e na Catedral, quando todas as religiões se uniram num só credo pela paz, pela vida e pela liberdade, em 1975. A cidade política de Antonio Candido foi palco da luta contra os regimes autoritários brasileiros, mas também dos anos de superação e organização operária, tendo ele participado da fundação do Partido dos Trabalhadores.

É possível que essas experiências paulistanas tenham se convertido nos estudos mais originais da história e da crítica literária planaltina. Estudar as manifestações culturais e literárias do período colonial paulistano não é tarefa das mais simples, dada a sua rarefação, ou mesmo o entranhamento da vida nos seus primeiros séculos de existência. Para os leitores de Formação da literatura brasileira (1959) fica evidente a pobreza da vida intelectual paulista quando comparada com a fartura de Vila Rica, em meados dos Setecentos, embora o bandeirismo tenha servido como um amálgama entre as duas sociedades. Faltava ao burgo planaltino, nas palavras do autor, os componentes sociológicos que tornam a experiência humana, ou seus “impulsos íntimos”, uma “expressão” coletiva. Na pobre São Paulo, essas condições se realizaram após a fundação da Faculdade de Direito, em 1827. Ou, de forma mais precisa, em 1840, quando “no flanco da comunidade paulistana cresceu e se firmou, com características próprias, o grupo diferenciado de acadêmicos”(Literatura e sociedade, p. 150).

Porém, é patente o estranhamento entre o corpo acadêmico e a comunidade citadina. Parafraseando um jornalista da época, Emilio Zaluar, esses corpos não se misturam, como o óleo e a água. Assim o autor lê a presença conflituosa do jovem Álvares de Azevedo em São Paulo, cuja impressão de não pertencimento à comunidade se acentua nas mal traçadas linhas endereçadas à mãe, no Rio de Janeiro. Em Educação pela noite, o drama Macário expressa bem essa “invenção literária da cidade São Paulo”, embora ela figure apenas na primeira parte. Mas como a história e a crítica brotam dessa articulação entre a teoria e a experiência vivida, o autor logo emenda que a São Paulo ficcional criou raízes:

“O noturno aveludado e acre do Macário suscitou a noite paulistana como tema, caracterizado pelo mistério, o vício, a sedução do marginal, a inquietude e todos os abismos da personalidade. Tema que fascinou gerações numa dimensão quase mitológica, repontando em muitos poemas de Mário de Andrade e, nos dias atuais, em sambas de Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, filmes de Walter Hugo Khouri, quadros de Gregório Correia, contos de João Antônio” (Educação pela noite, p. 16).

Nessa composição noturna da São Paulo de Antonio Candido, passado e presente se misturam. Leituras e experiências se conectam. Afinal, para o autor, a produção literária paulista deixa de ser um corpo estranho na comunidade, ao mesmo tempo em que se desprende dela e a transforma, pela via do Modernismo, entre 1922 e 1935. Encontra-se nesse ponto a originalidade de sua composição: a força renovadora que representou o Modernismo paulista “completa o processo iniciado na segunda metade do século XVIII, quando os seus grupos revolucionários procuram alargar o âmbito da criação artística, englobando os aspectos recalcados da sociedade e da cultura nacional” (Literatura e sociedade, p. 167). Naquele burgo entranhado e de manifestações rarefeitas, o autor encontra em Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Frei Gaspar da Madre de Deus e Cláudio Manuel da Costa “uma poderosa arma de sentimento de classe, de um lado, e assimilação de forasteiros” (p. 146) – em consonância com uma vertente historiográfica que via nessas manifestações a afirmação da autonomia paulistana.

“Sentimento de classe” e “assimilação de forasteiros” que se realizam apenas na metrópole dos anos de 1920 e 1930. Embora um e outro elementos provoquem um paradoxo que deverá ser superado nas tintas dos próprios modernistas, seja pela tomada de consciência de suas origens “aristocráticas” e sua superação, como veremos em Oswald de Andrade, ou pela constatação carnavalesca e profundamente irônica de quem se reconhecia e se autorrepresentava à margem da lógica dominante dos Quatrocentos: Mário de Andrade.

É nessa ronda noturna de uma cidade que afirma sua tradição, ao mesmo tempo em que irrompe com toda sua energia para o futuro, que nosso professor encontrará outras vozes e lugares: o Bexiga, de Adoniran; a Praça Clóvis e a Avenida São João, de Vanzolini; os baixios, de Walter Hugo Khouri; a “São Paulo, comoção da minha vida”, de Mário de Andrade.

Obrigada, mestre!

Referências:

Antonio Candido. Literatura e sociedade. Estudos de teoria e história literária. 8a. ed. São Paulo, T. A. Queiroz, 2000.

______ . A Educação pela noite. 5a. ed. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2006.

 

 


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