Ainda sobre o bolsonarismo

Por Daniel Afonso da Silva, doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 27/01/2023 - Publicado há 1 ano
Daniel Afonso da Silva – Foto: Arquivo pessoal

 

O bolsonarismo é a versão brasileira da erosão da ideia de progresso e esperança de prosperidade entoada pelas ideias de democracia, globalização e pelo multilateralismo saídos da Segunda Guerra Mundial; e que, depois de 1991, começaram a claudicar e se esvair.

As promessas da Carta do Atlântico de 1941 e da Carta das Nações Unidas de 1945 não convencem mais ninguém. Nem aos seus próprios fiadores norte-americanos e europeus. Tanto que permitiram a emergência de tendências extremistas e autoritárias em suas paisagens políticas nacionais e regionais que conduziram a cargos supremos ou às suas adjacências tipos como Donald J. Trump nos Estados Unidos, Marine Le Pen na França, Heinz-Cristian Strache na Áustria, Geert Wilders na Holanda, Victor Orbán na Hungria ou Silvio Berlusconi, Matteo Salvini e Giorgia Meloni na Itália. Essa frustração endêmica vem, portanto, de longe e o seu impacto direto sobre a emergência de extremismo pode nitidamente ser rastreado. Tome-se, por exemplo, o caso francês.

Numa perspectiva contemporânea após-1945, a “questão argelina” foi decisiva para a evolução da “extrema direita” na França. Os acordos protagonizados pelo general Charles de Gaulle entre 1958 e 1962 para pôr fim ao conflito franco-argelino reabilitaram os ressentimentos nacionalistas extremistas em toda parte. Os adeptos da Argélia francesa não concordaram com a “abdicação” de porção do território francês. Essa discordância fez germinar os sentimentos e convencimentos que lançaram as bases para a criação da agremiação Front National, partido de extrema direita, criado e liderado por Jean-Marie Le Pen em 1972 e inspirador de muitos análogos por toda a Europa.

Com a saída dos Estados Unidos dos acordos financeiro-econômicos de Bretton Woods, as sucessivas crises de petróleo dos anos de 1970, as crises econômicas subsequentes e o desemprego em massa no espaço europeu, esse extremismo foi se galvanizando no tecido social francês e europeu. Com o fim da Guerra Fria, em 1989-1991, a situação ficou ainda pior. Em lugar de prosperidade, viu-se o aumento do desemprego massivo e das angústias sociais. Termos como fraturas sociais, territórios perdidos e perdedores da globalização foram emergindo para esboçar uma realidade demasiado dramática. Tudo isso seguiu jogando água no moinho da “extrema direita”, que, não ao acaso, chegou ao segundo turno das eleições presidenciais francesas em 2002 com o Front National e Jean-Marie Le Pen.

O choque francês de 2002 foi desconcertante. Criou-se uma espécie de união nacional, onde adversários políticos históricos se unificaram para fazer barragem à ascensão do “extremo-direitista” Jean-Marie Le Pen. O esforço surtiu resultado. O presidente Jacques Chirac foi reeleito com 82% do sufrágio. Mas Jean-Marie Le Pen e o seu Front National seguiram no páreo, vivos e altivos e influenciando partidos de extrema direita no mundo inteiro. E, nos últimos pleitos franceses, tal e qual em 2002, Marine Le Pen, herdeira de Jean-Marie Le Pen e de seu partido extremista, disputou o segundo turno das eleições com Emmanuel Macron com chances plausíveis de vitória.

Saindo da França e voltando ao quadro geral, é desnecessário redizer que, para tudo isso, também contribuiu a invasão norte-americana do Iraque em 2003 sem o aval do Conselho de Segurança, após o 11 de setembro de 2001, e o verdadeiro bate-cabeça da Organização Mundial da Saúde na gestão da pandemia de covid-19 em 2020-2022, fatos que golpearam de morte a respeitabilidade dessas instituições multilaterais.

Numa correlação ainda mais franca, necessário reconhecer que as premissas liberais de Bretton Woods também não se sustentam mais. Não bastasse a saída dos Estados Unidos dos acordos em 1971, a crise financeira de 2008 implodiu o consenso financeiro-econômico forçado pelo mainstream neoliberal e neoclássico dos anos de 1970-1980 e outro consenso nunca mais se organizou. A geração baby boom foi a última a acreditar num futuro economicamente mais confortável que o passado dos pais. Hodiernamente, nos últimos 50 anos, nenhum país seguidor desses ideais de progresso e prosperidade modernos cultiva campos verdejantes. “El futuro es un país estraño”, já dizia o falecido historiador catalão Josep Fontana i Làzaro.

Talvez por isso, esquece-se com facilidade que, não fosse a pandemia de covid-19, o presidente Donald J. Trump teria sido facilmente reeleito nos Estados Unidos em 2020. Não simplesmente pelas taxas de desemprego historicamente mais baixas do país no século XXI, mas também pelas projeções de crescimento econômico mais substantivas dos últimos 50 anos – mesmo que sobre o custo dos efeitos da narrativa do American First e do Great Again que resultaram em guerra psicológica com a China (e com o mundo), desglobalização, protecionismos e (re)nacionalização industrial forçada dos Estados Unidos.

Da mesma maneira, subestima-se com desmesurada ingenuidade o potencial do bolsonarismo em reeleger – ou eleger outra vez – o capitão Jair Messias Bolsonaro como presidente do Brasil mesmo sendo a sua linguagem corporal tão endemicamente rude, o seu vocabulário pouco ou nada decoroso e os seus gestos nada diplomáticos – como se pode notar às fartas durante toda a sua vida militar, parlamentar e presidencial. Entretanto, “o ovo da serpente” está aí, como bem notou a jornalista Consuelo Dieguez em seu importante relato em livro homônimo (Companhia das Letras, 2022).

Por evidente que cloroquina pra emas e “não sou coveiro” ultrapassaram todas as linhas vermelhas de uma sociedade clínica e mentalmente estável. Foram movimentos dignos da lunatic fringe; não – nunca, jamais – de um homem público com responsabilidades supremas de presidente da República. Mesmo assim, o bolsonarismo (e seus simpatizantes) ao capitão Jair Messias Bolsonaro perdoa tudo e a sua reeleição em 2022 não ocorreu, reconheça-se, por detalhes.

Isso tudo quer dizer que a negação do retorno do presidente Lula da Silva ao poder é muito mais intensa que se imagina porque o bolsonarismo é muito mais complexo que se costuma supor.

Ao passo que o presidente Lula da Silva recorre ao identitarismo de ocasião e ao vocábulo neutro de convenção, os bolsonaristas de raiz voltam-se para a Bíblia para aguardar o retorno do seu Messias. As aglomerações de “vivandeiras” foi isso. E parcela da esperança depositada na marcha que resultou na catástrofe do 8 de janeiro de 2023 também. Não em broma, mas de modo literal. Os trumpistas fazem o mesmo. Todos aguardam o retorno do seu campeão.

Bolsonaro e Trump não são a mesma coisa. Mas são, sim, quase dois irmãos. Não foi ao acaso que o ministro Ernesto Araújo vaticinou que Donald J. Trump iria “salvar o Ocidente” e Jair Messias Bolsonaro, o Brasil. Numa equação bem confusa, foi se construindo a convicção entre bolsonaristas de que o lulismo é a expressão do puro anti-Cristo, anti-Ocidente e anti-Brasil.

Os odiosos incidentes do 8 de janeiro de 2023 em Brasília foram promovidos, na prática, pela camada vulgar e lunática do bolsonarismo. A canalha que adentrou e profanou as dependências dos Três Poderes está longe de ter consciência da profundidade da luta que lutam os “pensadores” do bolsonarismo. A razão e a alma do bolsonarismo são imperativamente letais e possuem lastros pelo mundo inteiro. Não é precisamente uma “extrema direita”. Trata-se de algo muito mais sutil e radical. Algo específico do século XXI. Um sinal dos tempos.

Diferente do que se costuma indicar, os maiorais do bolsonarismo – que não participam da lunatic fringe dos arruaceiros de plantão – não são incultos nem breves. Eles acompanham com paciência a composição de forças do governo recém-instalado em 1º de janeiro de 2023. E planejam com percuciência o momento ideal para o golpe letal. Que não foi o do domingo, 8, nem foi dessa vez.

(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo)


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