Agenda 2030: Combater a crise climática exige enfrentar desigualdades raciais, de gênero e socioeconômicas

Por Ergon Cugler, pós-graduando na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP e pesquisador do CNPq

 13/12/2023 - Publicado há 5 meses
Ergon Cugler – Foto: Reprodução/EACH USP
Desde 2015 e sucedendo os Objetivos do Milênio, a Agenda 2030 da ONU e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) atuam como instrumentos de articulação internacional no enfrentamento da crise climática. Se por um lado as intensas e frequentes ondas de calor não deixam dúvidas sobre a urgência e a realidade do aquecimento global, também preocupa o avanço do negacionismo climático e de teorias da conspiração que dizem que a Agenda 2030 seria um plano de controle de uma suposta Nova Ordem Mundial. E pior, isso ocorre diante de metas longe de serem alcançadas e de populações vulnerabilizadas que têm sofrido ainda mais conforme avança a crise climática.

Com tais ondas de calor, a crise aos poucos deixa de ser vista como tabu e ganha espaço no debate público. Avança mais timidamente, porém, o debate sobre as populações vulnerabilizadas, as quais sentem ainda mais os efeitos do aquecimento global. Até porque, quando chove intensamente, a maioria da população sofre, mas quem vive no acostamento de morros sofre ainda mais. E quando não chove, a seca pode afetar muitos, mas afeta mais ainda as populações em territórios que dependem da chuva para inclusive se alimentar.

Não à toa, um estudo de 2018 já apontava que populações pobres têm sete vezes mais risco de falecer por mudanças climáticas, evidenciando desigualdades raciais e de gênero, estas estruturalmente relacionadas às vulnerabilidades econômicas. Porém, se aprendemos algo com a pandemia da covid-19 é que “quem tem fome, tem pressa”, mas diante de uma crise – e dessa vez anunciada -, quando as populações vulnerabilizadas social e economicamente sairão das manchetes trágicas e ocuparão a prioridade na elaboração de políticas públicas?

Há quem diga que os ODS tratem apenas da pauta ambiental – quase que em uma visão de jardinagem sobre as ações a serem empenhadas -, porém dentre seus 17 objetivos e 169 metas, então questões como a redução de desigualdades (ODS 10), erradicação da pobreza (ODS 1), boa saúde e bem-estar (ODS 3), paz, justiça e instituições eficazes (ODS 16) e tantas outras.

Com um arranjo multidimensional, os ODS partem de uma lógica inter-relacionada de ações contra a mudança global do clima, compreendendo que não é possível, por exemplo, avançar em consumo e produção responsáveis (ODS 12) sem também avançar em trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8) que viabilizem um arranjo de sociedade sustentável. Ou ainda, que não é possível avançar em educação de qualidade (ODS 4), sem avançar em igualdade de gênero (ODS 5), uma vez que a pobreza menstrual limita o acesso de pessoas que menstruam às escolas, sem contar a falta de perspectivas e evasão quando falamos de jovens LGBTQIA+.

Logo, ao percorrer os ODS, é central listar dimensões que evidenciam que só é possível avançar no combate à crise climática ao enfrentar desigualdades raciais, de gênero e socioeconômicas:

1. Erradicação da Pobreza (ODS 1): Populações mais pobres frequentemente residem em áreas propensas a desastres naturais, tornando-as particularmente suscetíveis aos impactos das mudanças climáticas. Destaca-se aqui a necessidade de desenvolver programas inclusivos para comunidades racialmente marginalizadas, assegurando trabalho digno e decente como parte essencial do enfrentamento às desigualdades climáticas.

2. Fome Zero (ODS 2): Comunidades de agricultura familiar enfrentam impactos mais severos de eventos climáticos, como secas e inundações, comprometendo seriamente a segurança alimentar. Aponta-se que a insegurança alimentar em comunidades racialmente discriminadas exige políticas específicas que superem as barreiras históricas ao acesso a recursos agrícolas.

3. Boa Saúde e Bem-Estar (ODS 3): A poluição do ar e as alterações nos padrões climáticos têm implicações diretas na saúde das comunidades mais pobres, aumentando as taxas de doenças respiratórias e infecciosas. Investir em serviços de saúde sexual e reprodutiva acessíveis é crucial, especialmente às populações LGBTQIA+ que muitas vezes carecem de políticas específicas, além de garantir atendimento de qualidade e abordar disparidades raciais na saúde para combater o racismo estrutural e institucional.

4. Educação de Qualidade (ODS 4): Esforços para implementar políticas que incentivem a participação equitativa de meninas em todos os níveis de educação devem ser complementados pela eliminação de barreiras ao acesso à educação para comunidades racialmente marginalizadas, incluindo currículos culturalmente relevantes. Há também a evasão escolar de travestis e transexuais, além das barreiras de acesso ao ensino superior, sendo pontos centrais.

5. Igualdade de Gênero (ODS 5): A Agenda 2030 destaca explicitamente a necessidade de adotar legislações e políticas que promovam a igualdade de oportunidades e o empoderamento econômico das mulheres e meninas. Avançar no desenvolvimento sustentável requer a inclusão ativa de mulheres em processos decisórios políticos e profissionais, incluindo em cargos de liderança, diretorias e reconhecendo que a igualdade de gênero é fundamental para a sociedade.

6. Água Potável e Saneamento (ODS 6): As mudanças climáticas agravam a escassez de água, afetando principalmente comunidades marginalizadas com acesso limitado a recursos hídricos. Abordar desigualdades no acesso à água potável exige ações para comunidades vulnerabilizadas.

7. Energia Limpa e Acessível (ODS 7): Comunidades mais pobres e socialmente marginalizadas frequentemente enfrentam restrições de acesso a fontes de energia limpa, dependendo de combustíveis fósseis prejudiciais ao clima. Superar essas desigualdades implica em promover o acesso à energia limpa e renovável, viabilizando até um consumo energético mais sustentável.

8. Trabalho Decente e Crescimento Econômico (ODS 8): Além de eliminar a discriminação de gênero e sexualidade no trabalho, é crucial adotar políticas que promovam a inclusão de grupos racialmente discriminados, combatendo a discriminação no emprego, especialmente em posições decisórias. Até porque, não é possível pensar um crescimento econômico que não seja inclusivo.

9. Indústria, Inovação e Infraestrutura (ODS 9): Diante de desigualdades em postos de trabalho, há um esforço internacional em incentivar a participação de mulheres em carreiras STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática) por meio de educação de qualidade.

10. Redução das Desigualdades (ODS 10): As mudanças climáticas podem amplificar desigualdades sociais e econômicas existentes, tornando ainda mais difícil para grupos superarem a pobreza. Políticas específicas devem encarar as desigualdades de gênero e racial, incluindo travestis e transexuais, em termos de políticas públicas e oportunidades econômicas.

11. Cidades e Comunidades Sustentáveis (ODS 11): Comunidades urbanas vulnerabilizadas enfrentam riscos crescentes devido à falta de infraestrutura resiliente e pobreza concentrada. Há portanto que se planejar cidades que promovam a segurança e mobilidade de mulheres e LGBTQIA+, combatendo o assédio e garantindo iluminação adequada, além de promover um debate aberto que enfrente a segregação racial em áreas urbanas.

12. Consumo e Produção Responsáveis (ODS 12): Comunidades mais ricas contribuem muito mais para a emissão de gases de efeito estufa, enquanto as comunidades mais pobres sofrem ainda mais com esses impactos. Tal emissão desigual diz respeito diretamente às vulnerabilidades socioeconômicas existentes nos territórios, que se interrelacionam com populações diversas.

13. Ação Contra a Mudança Global do Clima (ODS 13): Tem-se apontado para a necessidade de incluir perspectivas de gênero nas estratégias de adaptação e mitigação das mudanças climáticas, além de garantir que comunidades racialmente marginalizadas participem ativamente nas decisões relacionadas à ação climática e se beneficiem de iniciativas, inclusive com a expressão do racismo climático ganhando visibilidade internacionalmente.

14. Vida na Água (ODS 14): Comunidades dependentes da pesca são especialmente afetadas pelas mudanças nos ecossistemas marinhos devido às mudanças climáticas. Diante de tal, há o desafio de se envolver comunidades costeiras racialmente discriminadas, como populações ribeirinhas e povos indígenas e originários na gestão sustentável dos recursos hídricos.

15. Vida Terrestre (ODS 15): A degradação do solo e a perda de habitats devido às mudanças climáticas afetam diretamente a fauna e flora, prejudicando as comunidades que se relacionam com a biodiversidade. Há aqui a necessidade de se envolver populações ribeirinhas e povos indígenas e originários na preservação de ecossistemas, respeitando conhecimentos e direitos.

16. Paz, Justiça e Instituições Eficazes (ODS 16): A disputa e competição por recursos naturais escassos, exacerbada pelas mudanças climáticas, tem levado a graves conflitos e instabilidade social, especialmente na Amazônia. Há o desafio de promover instituições eficazes que combatam a violência em tais territórios, além de garantir sistemas judiciais sensíveis ao gênero e abordar o racismo estrutural e institucional para garantir tratamento mais igualitário da Justiça.

17. Parcerias e Meios de Implementação (ODS 17): A resposta eficaz às mudanças climáticas requer colaboração global e a mobilização de recursos para ajudar as nações mais vulnerabilizadas a se adaptarem e mitigarem impactos. Para tal, é preciso estabelecer parcerias que promovam a inclusão de mulheres e LGBTQIA+ em todas as etapas do desenvolvimento sustentável, além de fomentar colaborações que envolvam ativamente comunidades racialmente discriminadas na implementação de programas de desenvolvimento sustentável.

Se está difícil para nós, está muito mais para quem não possui ventilador, alimento, acesso à água potável, ou sequer um lar. Apesar de tabus, fica cada vez mais evidente que combater a crise climática exige um compromisso que vá para além do papel, para então enfrentar desigualdades raciais, de gênero e socioeconômicas; e que não há avanço no desenvolvimento sustentável deixando populações vulnerabilizadas para trás, especialmente porque são as que mais sofrem.

Alcançar uma sustentabilidade implica não apenas abordar os sintomas visíveis da crise climática, mas também atacar suas raízes profundas nas estruturas sociais e econômicas que perpetuam a marginalização de determinadas comunidades. Dessa forma, o reconhecimento de que a justiça social é inseparável da justiça ambiental precisa ser fortalecido, impulsionando movimentos e iniciativas que buscam transformações profundas em sistemas políticos, econômicos e sociais.

Assim sendo, avançar na Agenda 2030 requer um esforço coletivo para redefinir prioridades, repensar práticas e garantir que nenhuma comunidade seja deixada para trás. O futuro sustentável que buscamos só será alcançado quando as questões de justiça racial, de gênero e socioeconômica forem tratadas como componentes essenciais e interdependentes de uma abordagem abrangente para lidar com a crise climática.

E antes que seja tarde demais, vale lembrar das palavras de Manu Chao, pois “é sempre mais fácil empurrar com a barriga e deixar o abacaxi para os netos, mas enquanto o mundo continua parolando, o termômetro e a água vão subindo”.
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