O Brasil tem vivenciado uma crise sanitária a partir do avanço da pandemia de covid-19 que tem colocado em evidência as desigualdades sociais de um país com uma política econômica excludente centrada no consumismo em que os direitos essenciais e fundamentais não são universalizados e, sim, privilégios de poucos.
São numerosas as notícias sobre a disseminação da covid-19 no País e como ela vem alcançando o território nacional de maneira desigual, em consonância com as inúmeras assimetrias de diferentes origens como a geográfica, densidade demográfica e condições socioeconômicas.
A pesquisa Pandemia na Favela, realizada pelo Data Favela entre os dias 20 e 22 de março de 2020, com o objetivo de investigar o impacto da pandemia nas favelas do Brasil, revelou que 86% dos moradores de favelas iriam passar fome durante a pandemia, caso não houvesse ações específicas voltadas para essa população. Essa pesquisa, divulgada pelo jornal Folha de S. Paulo, noticiava que “em quarentena, 72% dos moradores de favelas têm padrão de vida rebaixado” e informava ainda que 13,6 milhões de pessoas moram nas favelas brasileiras, e que, dessas, uma em cada três teria dificuldades na compra de itens básicos de sobrevivência, como alimentos durante o período de isolamento físico.
A condição de insegurança alimentar já instalada anteriormente no País é então agravada pela pandemia e claramente observada em inúmeras favelas como, por exemplo, na favela do Jardim Colombo, localizada no Complexo Paraisópolis, situado nas zonas oeste e sul da cidade de São Paulo.
O Jardim Colombo, a única favela do Complexo Paraisópolis que se encontra na zona oeste da cidade de São Paulo, tem, aproximadamente, 17 mil habitantes.
De acordo com dados de uma pesquisa realizada em 2015, o Jardim Colombo é formado, em grande parte, por moradores com baixo nível educacional; 8,1% nunca estudaram, 36,4% não concluíram o Ensino Fundamental e 10,6% não concluíram o Ensino Médio. A maioria dos moradores recebia entre 1 e 2 salários-mínimos e mais de 30% dos entrevistados empregavam-se na economia informal. Trabalhos relacionados a tarefas domésticas, como limpeza e cuidado de idosos e crianças, foram bastante relatados nas entrevistas e, para garantir a sobrevivência, alguns ainda se dedicavam a reciclar resíduos de diferentes tipos. Os moradores do Jardim Colombo, ainda, convivem com diversos problemas de infraestrutura, como: depreciação da paisagem, ocupação irregular em terrenos particulares, desarticulação e fragmentação do tecido urbano, riscos ambientais em áreas ocupadas por lixo orgânico gerando a contaminação do solo, córrego poluído ocasionando enchentes no entorno em períodos de chuva e espaços livres degradados.
O Movimento Fazendinhando, um projeto social surgido em 2018 no Jardim Colombo, vem se articulando e trabalhando para que seus moradores tenham, principalmente nesse período de pandemia, comida na mesa. Antes da pandemia, este projeto social era constituído por oito integrantes apenas, e nesses últimos meses incorporou mais de 20 voluntários entre moradores e pessoas de fora do Jardim Colombo.
Com a pandemia, além de ações de revitalização e integração do espaço, os integrantes do movimento realizaram a primeira campanha de financiamento coletivo, o que possibilitou, inicialmente, ajudar 27 famílias com a doação de comida, roupas e itens de higiene. Durante os cinco meses em que essa campanha foi realizada, foram doadas 650 cestas básicas e mais 650 cestas de legumes, por semana, com a ajuda de parceiros e empresas externas à favela, beneficiando, aproximadamente, 5 mil famílias no total.
Ações como essas colocam em evidência a capacidade de organização da sociedade civil e uma oportunidade para a troca de conhecimento e cooperação entre seus participantes observada no compartilhamento de alimentos e refeições prontas, ou seja, em uma forma de comensalidade vivenciada na favela através de ações sociais.
As sociabilidades alimentares como processos interativos geram-se em contextos delimitados no espaço e no tempo, em casa e fora de casa, desenrolando-se durante momentos em que os alimentos estão presentes. Deslocam a mesa física para a mesa metafísica, ou seja, a mesa e, principalmente, a comida vistas como meios para além das suas expressões físicas, mas sim expressões de significados, que residem assim no campo do abstrato.
Destaco aqui o significado da comida como elemento que reúne pessoas e ganha formas de colaboração mais firmes e densas durante a pandemia de covid-19, fortalecendo o espaço do Jardim Colombo como uma unidade social. Podemos atribuir, em momentos de falta de alimentos, um significado à comida atribuída a necessidade básica, item de sobrevivência, mais do que em momentos de acesso. No entanto, observamos que, além de primeira necessidade, é o elemento que une. A sociabilidade imbuída na partilha do alimento mostra que, no Jardim Colombo, para muitos não basta saciar sua própria fome, mas sim compartilhar a comida, saciando a fome e levando uma melhor qualidade de vida para quem está ao seu redor.
Se por um lado vivenciamos uma escassez de proteção social do Estado, por outro observamos em movimentos como o Fazendinhando um grande esforço coletivo para que todos tenham o que comer. Por meio da doação de alimentos é possível agir em conexão com o outro e também constituir um meio de aprender sobre o outro e inserir-se – bem como manter-se – simbolicamente vinculado a um determinado grupo social. Durante o período da pandemia temos observado pessoas imbuídas em alimentar o outro mesmo quando falta comida para suas famílias. Essa sociabilidade identificada nas ações de doação de alimentos pode reforçar a identidade de muitos grupos sociais.
Com a pandemia, a estrutura da vida cotidiana de quem mora nas favelas é colocada em evidência dando visibilidade ao que para muitos era invisível à sua realidade. A fome, nas favelas, não é um fenômeno oriundo da pandemia de covid-19, mas com ela a fome é posta em evidência e agravada pelo aumento do desemprego. Enquanto nas mídias sociais se fala muito da espera ao retorno da normalidade ou da busca por um novo normal, nas favelas escutamos que “não há ‘novo normal’ para quem nunca teve nem o normal”. Para a grande maioria dos moradores das favelas, a “normalidade” anterior à pandemia de covid-19 já era pautada pela escassez de alimentos, de infraestrutura, de empregos e de qualidade de vida.
* O presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)