A fala consumista

Por Jean Pierre Chauvin, professor de Cultura e Literatura Brasileira da ECA-USP

 09/09/2022 - Publicado há 2 anos
Jean Pierre Chauvin – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

 

 

Provavelmente, as duas palavras-chave do discurso consumista sejam oportunismo e ansiedade. De um lado, o vendedor assegura a importância e a qualidade do produto. A seu turno, o consumidor se justifica, perante si e os concidadãos de bem, recorrendo a afirmações que exprimem urgência: “os exemplares vão acabar!”; “são os últimos dias de oferta!”; “o produto está com superdesconto!” e congêneres. Embora seja presa fácil das gôndolas, vitrines, anúncios em revistas ou jornais, além do self-marketing de “conteudistas” espalhados nas redes sociais, o consumista se considera um ser poderoso, bom e pensante.

Certo de sua relevância para a micro e a macroeconomia (“estou ajudando o comércio local”; “com isso, colaboro com a economia do país”), com frequência ele adquire produtos sem lembrar que metade do prazer em carregar sacolas consiste em ostentar os objetos à vista do maior auditório possível. Em parte, isso explica a altivez de quem marcha ao ritmo nem lento, nem frenético, sobre o piso de granito, cercado de vitrines perfumadas, a portar insígnias de bom-gosto que comprovam seu poder aquisitivo.

Provavelmente foi na década de 1950 que a sociedade, ainda ignorante de sua condição “pós-moderna”, passou da disforia planetária à euforia hiperindividualista. Celebrando o fim da Segunda Guerra Mundial, foi necessário que a paz armada estimulasse a ilusão de um mundo padronizado, harmônico e estável, propício à novíssima ordem do consumo. Não é segredo que uma parcela considerável do PIB dos países ocidentais advém do cultivo de supérfluos entre os cidadãos ordeiros e apologetas da gestão excludente.

É emblemático que hiperconsumo e meritocracia tenham nascido praticamente juntos, logo após a Segunda Guerra Mundial. Tanto o Supercliente quando o “cidadão-de-bem” supõem-se instalados no Olimpo da sociedade concorrencial. Aliás, a desigualdade social pouco importa aos que “chegaram lá”, única e exclusivamente pelo suposto “merecimento”. Por isso mesmo, o discurso dos “conquistadores” soa quase sempre como celebração da dignidade; da disciplina e da ordem sobre a vadiagem; do sucesso como antídoto à falta de empenho etc.

A miséria alheia não se traduz em conscientização de que o mundo é injusto. Em lugar de solidariedade ou compaixão, o contraste entre os que têm/conseguiram e os que não têm/perderam reforça a autoestima e o juízo severo dos “conquistadores”. Conforme observa Michael Sandel (2021, p. 22), “em uma sociedade desigual, aqueles que alcançam o topo querem acreditar que seu sucesso tem justificativa moral. Em uma sociedade de meritocracia, isso significa que os vencedores devem acreditar que conquistaram o sucesso através do próprio talento e empenho”.

“Vencedores” e hiperconsumistas têm horror a termos que remetam a qualquer forma de assistência – exceção feita à sua colaboração, quase nunca espontânea, mas quase sempre paternalista. No âmbito profissional, o consumista – refém das marcas e dos últimos lançamentos – readquire parte do poderio de super-homem, ao disfarçar a exploração dos “seus” colaboradores com a falácia da generosidade patronal. Aliás, a desigualdade social pouco lhes importa.

Aparentemente, o consumo deixa de ser privilégio de poucos e se torna direito geral. Para o consumista, fórmulas como “fiz por merecer” e “vai trabalhar, vagabundo” não são contraditórias; mas, complementares. Ele tem horror a termos que remetam a qualquer forma de assistência (exceção feita à sua colaboração espontânea e paternalista). No âmbito profissional, o consumista – refém das marcas e dos últimos lançamentos – readquire parte do seu poderio de super-homem ao disfarçar a exploração dos “seus” colaboradores com a falácia da generosidade patronal.

Como ele ignora que o conceito de “meritocracia” nasceu de um romance distópico de Michael Young publicado na década de 50 (The rise of the meritocracy, London, Pelican Books, 1958), o Supercliente utiliza o termo a torto e a direito, cioso de que a (i)lógica do seu mundo tende à expansão sem-fim e é naturalmente exclusiva. Superado o welfare state, ele introjeta a racionalidade mercantil: em vez de lamentar que não há (nem haverá) lugar para todos na ordem do consumo, repete a máxima de que as sociedades são assimétricas desde o antigo Egito. De modo geral, o consumista defende a irracionalidade humana – que repousa sobre a concentração de riqueza versus a assimetria social –, sob o embalo da falácia de que “basta não desistir dos sonhos” para todo e qualquer um “chegar lá”.

Raramente, o consumista antevê as anomalias do macrossistema em que infravive. A ideologia empreendedora (“nem patrão, nem empregado”) tornou-o orgulhosamente prático, contrafeito ao “idealismo” daqueles que não trabalham duro feito ele, ou só orbitam no mundo teórico da academia. Nada é mais incompatível com o pensamento, o discurso e a pragmática consumista que a preocupação com as questões sociais, por mais pungentes que elas sejam. Ainda assim, sobra tempo e lugar para o cidadão-cliente se ocupar da vida “empolgante” das celebridades e subcelebridades; acompanhar programas superficiais que supervalorizam minúcias; assistir a enlatados em cinemas servidos com pipoca e big copos de refrigerante.

Para os adeptos e praticantes do hiperconsumismo, as compras perfazem a plenitude possível. Trabalhar até a exaustão passa a ser percebido como chancela nobre e critério nobilitante, capaz de explicar o gasto desenfreado a reboque do salário (ou do novo endividamento via cartão de crédito). Mesmo quando isso acontece, o consumo costuma ser descrito como recompensa moral, mas também funciona como uma espécie de muleta emocional. O que os consumistas esquecem é que o famigerado “banho de loja” resulta de um movimento cíclico que se inicia pela ansiedade de ter, a compulsão do gasto, a posse do objeto e o questionamento, dali a poucos meses, da efetiva utilidade do item, outrora adquirido com tamanha fúria.

A fala consumista naturaliza a criação de falsas necessidades pela indústria e o comércio, que dependem de estratégias publicitárias cada vez mais agressivas e invasivas. O deslumbramento frente às engenhocas, perfeitamente dispensáveis até a véspera, traduz-se em sentenças tão totalizantes quanto inconsistentes, tais como: “eles pensam em tudo”. O Supercliente ajuíza e condena o mundo em guerra, mas cega frente à beligerância dos meios de publicidade, prestes a arrancar mais bocados de suas parcas economias. É que ele constitui, em essência, um ser guloso e devorador.

Se estivéssemos a reler os ensaios de Sigmund Freud, ousaríamos afirmar que parte desse ser permanece na fase oral. De certo modo, bastaria adaptar a imagem de uma boca que morde e suga o seio materno sem cessar, como metáfora da ânsia hiperconsumista. Um misto de avidez, pressa e cupidez caracteriza a postura irrequieta desse cidadão-cliente, tão orgulhoso de seus atos e trejeitos mercantis.


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