A emergência climática deve ser tratada como excepcionalidade pela gestão pública?

Por Ivan Maglio, pesquisador do LABVerde da Faculdade de Arquiutetura e Urbanismo da USP, Renata Esteves, advogada ambientalista, e Rossane Brancatelli, membro do Pro-Pinheiros

 09/11/2023 - Publicado há 6 meses
Ivan Maglio – Foto: Arquivo pessoal
Renata Esteves – Foto: Arquivo pessoal
Rosanne Brancatelli – Foto: Arquivo pessoal
São Paulo enfrentou, na última sexta-feira, dia 3, no meio de um feriado prolongado, com boa parte dos seus moradores fora da cidade, a chegada de uma frente fria, com um sistema frontal ligado a um ciclone extratropical. Ventos de 105 km por hora atingiram a cidade e sua região metropolitana, causando impactos de toda ordem provocados pelos ventos fortes e chuvas intensas que chegaram no meio da tarde e escureceram toda a cidade.

Após o evento, seus impactos causaram na cidade um apagão que inicialmente afetou cerca de 2,5 milhões de moradias – situação que só se resolveu em sua totalidade seis dias depois. Estruturas de prédios voaram sobre as ruas, centenas de árvores caíram. O Parque do Ibirapuera, com centenas de árvores caídas, foi fechado excepcionalmente, e o prédio da Bienal de Arte foi fechado ao público. Cerca de 18 bairros da cidade e 12 cidades da Grande São Paulo foram atingidos, ocorreram sete mortes, segundo a Defesa Civil, e foram registrados em São Paulo, Osasco, Santo André, Suzano e Limeira e Ilhabela cerca de 100 desabamentos em todo o Estado de São Paulo.

Diante dessa situação é possível avaliarmos a vulnerabilidade da cidade e do Estado de São Paulo às mudanças climáticas e a fragilidade das infraestruturas de energia e abastecimento e a ausência de monitoramento e de cuidados obrigatórios da arborização urbana. O prefeito Ricardo Nunes não reconhece as evidências do impacto climático e diz que foi um evento excepcional, o maior em termos de velocidade dos ventos desde o ano de 1995 segundo as fontes oficiais. Demonstrando a mesma argumentação de outros políticos, como o governador do Estado do Rio Grande do Sul diante da catástrofe que atingiu aquele Estado em julho de 2023. “As questões das mudanças climáticas nos colocam grandes desafios”, disse o prefeito da capital paulista Ricardo Nunes, em coletiva de imprensa na sede da Enel, referindo-se ao acontecimento como excepcional.

Na verdade, não houve nada de excepcional para quem reconhece o que a ciência vem prevendo sobre os eventos extremos, reafirmado no sexto relatório do Painel Intergovernamental de Mudança Climática lançado em 2023, que o planeta se encontra sob risco das ameaças climáticas e que os efeitos do fenômeno El Niño, que aquecem as águas do Atlântico Sul causando chuvas intensas e ciclones no Sul e Sudeste e secas extremas no Norte do Brasil, será um dos mais graves dos já ocorridos.

Mas os impactos dos riscos climáticos vêm acontecendo na cidade de São Paulo desde as enchentes de fevereiro de 2022 e repetidas neste verão de 2023, com mortes por inundação até mesmo num bairro nobre como Moema, que sofreu uma grande inundação numa chuva de cerca de 70 mm, nem tão significativa. Estes eventos não têm merecido nenhum planejamento sistemático para aumentar a resiliência da cidade, são propostas medidas emergenciais, e as diretrizes do planejamento urbano aplicado na cidade, centrado na ampliação do adensamento e da verticalização pela revisão do seu Plano Diretor e agora pela revisão de zoneamento, fazem prever um cenário sombrio para a cidade.

Pois, como explicar a impermeabilização crescente de bairros e a supressão crescente da vegetação, até nas áreas de mananciais da cidade, pela total falta de fiscalização ante as pressões do mercado imobiliário irregular provocado pelo crime organizado? Como explicar a política urbana para os bairros nobres do centro consolidado, que é a de promover uma das maiores ondas de verticalização e adensamento promovida com a ausência de quaisquer preocupações com o impacto ambiental a ser causado.

O aumento das áreas impermeabilizáveis e canalização de córregos e a criação de piscinões segue sendo a medida mitigadora escolhida pelo poder público, mesmo com a demonstração de sua total ineficácia ante a magnitude dos impactos climáticos previstos e agravados por uma política urbana que não os reconhece e que segue caminhando num sentido oposto às diretrizes científicas, que orienta soluções baseadas na natureza, para a recuperação e renaturalização da cidade com o aumento de sua resiliência aos impactos climáticos.

O acontecimento da sexta-feira, 3 de novembro, revela o total esgarçamento da infraestrutura urbana de energia fornecida por uma empresa que detém a concessão e opera o sistema sem manutenção ou modernização e que não resiste a situações chamadas normais de chuvas e ventos. Desde 2002, o Plano Diretor Estratégico prevê a colocação da fiação urbana em rede subterrânea, mas a companhia segue fugindo desse compromisso enquanto faz uma poda criminosa da vegetação urbana, sob os olhos complacentes do poder público. A companhia de saneamento, a Sabesp, está sendo sucateada para a privatização ora proposta pelo governo estadual, que fez um grande Plano de Demissão Voluntária na Sabesp e não contratou substitutos visando privatizar a companhia, que também demonstrou sua fragilidade pelo número de bairros sem abastecimento de água por falta de energia.

O poder público diz ser um evento excepcional. Não é. É um evento decorrente das mudanças climáticas, que expõe as entranhas da cidade de São Paulo. A quinta maior metrópole do mundo faz de conta que cumpre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e diz que se prepara para enfrentar a crise climática.

Não é o que mostra o seu planejamento urbano na revisão do Plano Diretor Estratégico, e agora na revisão em discussão da Lei de Zoneamento, que ignoram, solenemente, os acordos assinados pela cidade de São Paulo, tanto as metas da Agenda 2030 como a de se tornar uma cidade com emissões zero até 2050, de ser uma cidade resiliente à crise climática fortalecendo sua política de recuperação ambiental e de criação de uma sólida estrutura de parques e áreas verdes e remanejando ou recuperando as 220 mil moradias em áreas de risco de escorregamento e inundação. E, por fim, ataca-se com a atual proposta de política urbana o que a cidade tem de positivo e bem ocupado com respeito à permeabilidade e à manutenção das áreas verdes, que são seus bairros jardins residenciais e suas vilas, e o que resta de suas nascentes e vegetação remanescente.

Nesta revisão da Lei de Zoneamento querem desqualificar esses 3% do território da cidade, enquanto os esforços têm que ser por requalificação dos demais 97%. São Paulo caminha na contramão do mundo sustentável.

Resta uma esperança? Que toda a população da cidade, moradora desses bairros e periferias devastados e sujeitos a inundações, pelos excessos de impermeabilização e esgarçamento das infraestruturas, perceba que terão sua qualidade de vida deteriorada e seus imóveis desvalorizados, enquanto as grandes corporações vendem a cidade para o mercado financeiro nacional e internacional.

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