Governança e o risco da ilusão de controle

Por Fábio Frezatti, professor da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP

 21/07/2023 - Publicado há 9 meses

Perguntei para o ChatGPT: qual seria a utilidade de uma senha?

Ele colocou cinco alternativas e a que mais me interessou foi a primeira, a mais simples e corriqueira que chamou de “autenticação de usuário”:

“Uma senha é usada para verificar a identidade do usuário antes de permitir o acesso a um sistema, como um computador, telefone, conta de e-mail, conta bancária, mídias sociais, entre outros. Ela serve como um mecanismo de segurança para garantir que apenas pessoas autorizadas possam acessar determinados recursos ou informações.”

Gostaria de ampliar a utilidade incluindo no item “entre outros”, o ambiente organizacional, tanto corporativo como voltado para a coletividade, de controle público ou privado.

Algumas palavras aparecem e se tornam senhas para abrir portas para pessoas e organizações. Correspondem a um tipo de “autenticação de usuário”, que abre a possibilidade de serem admiradas e aceitas dentro de um dado ambiente. Inovação, sustentabilidade, inclusão e governança são alguns exemplos de senhas que, ao serem coladas às organizações as permitem serem rapidamente incluídas em algum grupo seleto. Abre-te, Sésamo!

Neste artigo, a palavra governança é tratada como uma senha importante que distingue organizações, e além de separar o “joio do trigo”, proporciona hierarquia no podium, de “autenticação de usuário”. Dizer que a estrutura de governança é adequada é uma senha para acomodar espíritos e medos das pessoas e instituições frente a riscos. É por isso que, de tempos em tempos, o mundo é estremecido com problemas, e as pessoas se perguntam se a senha era válida ou se ainda representa aquilo que esperavam que o fosse. A primeira alternativa é injusta, se assim podemos chamar, pois não indica o reflexo de tudo aquilo que os mecanismos de governança evitaram ou minimizaram em termos de riscos e perdas. A segunda remete à percepção do ambiente de constante mudanças o que demanda uma visão dinâmica. Vou me ater à segunda forma.

A governança das organizações existe para estabelecer e promover um conjunto de práticas, estruturas e processos que visam direcionar, controlar e supervisionar uma organização. Ela é essencial para garantir que as organizações atinjam seus objetivos de maneira eficaz, sejam elas empresas privadas, instituições públicas ou ONGs. Espera-se que agregue valor tanto no direcionamento como no evitar perdas. Deve ser percebido que a governança pode incluir e excluir agentes, dependendo da visão e tipo de organização. Pode se voltar para exclusivamente para proteger os sócios ou para considerar agentes de toda a sociedade, por exemplo.

A palavra governança é muito poderosa e existem razões para isso. Afinal, no mundo, sempre que surge uma crise, alguma ameaça, ou perda, as instituições e as pessoas reagem. A perenidade como princípio faz parte da lógica que a entidade deva existir indefinidamente, e devam existir mecanismos para assegurar essa expectativa. Encontramos algumas organizações longevas, como por exemplo o hotel Hoshi Ryokan, que data do século 8 da era cristã, mas se trata de mais um caso de exceção exótica exatamente para validar a regra da finitude organizacional.

Quando recebemos notícias sobre as empresas que conhecemos, ao menos por sermos consumidores dos seus produtos, e identificamos problemas associados à governança, vem na cabeça uma sensação ruim com várias dúvidas: “o que eu não sei?”, “onde mais isso pode acontecer?”, “que tipo de perda ainda posso ter?”. Muito frequentemente essas organizações alegavam ter tudo que o modelo de governança exigia: conselhos, definições formais, reuniões de planejamento e prestação de contas, protocolos, auditorias, políticas e estratégias para gestão de risco, procedimentos para as atividades-chave, modelos de definição de metas e avaliação de desempenho e remuneração para executivos. Normalmente vamos procurar a solução do problema na estrutura, enquanto a válvula dinâmica está ligada ao agente no processo de agência. É por isso que a ilusão do controle se estabelece quando a estrutura é implementada e não cuidada com perspectiva dinâmica.

Giddens, que inspira esta abordagem, trata a relação entre agência e estrutura entendendo que ambas são elementos interdependentes e essenciais para entender a sociedade. A agência se refere à capacidade dos indivíduos de agir intencionalmente e tomar decisões que afetam suas vidas e o mundo ao seu redor. Não são produtos passivos das estruturas sociais, mas decorrem de indivíduos e/ou grupos que podem agir e influenciar tanto os agentes como a sociedade de maneira mais ampla. A agência envolve a capacidade de os indivíduos refletirem sobre suas ações e o contexto social em que estão inseridos, inclusive reconfigurando as estruturas.

Por sua vez, Giddens explicita que a estrutura é o conjunto de regras, normas, valores e instituições que moldam e organizam a sociedade. A estrutura fornece o contexto no qual a agência opera, estabelecendo os limites e possibilidades de ação para os indivíduos. Enfatiza que a estrutura não é algo fixo ou imutável, mas é constantemente reproduzida e transformada através das ações dos agentes.

Uma vez instalada, a estrutura provoca a percepção da ilusão do controle, pelo simples fato de as pessoas entenderem que, se existem mecanismos, ou seja, a estrutura, existe governança e o controle ocorrerá. É aí que a agência aparece e ao surgir um novo problema ou crise, na primeira instância como possível responsável pela falha de evitar a perda o responsável pela agência, que por sua vez, vão alinhar suas ações em função da estrutura.

William Defoe teve a oportunidade de estrelar vários filmes, alguns muito bons, e ser o herói nunca foi seu forte. No quase monólogo Inside (2023), ele é um ladrão de obras de arte que invade uma casa razoavelmente suprida por inteligência artificial. Recebeu do comparsa uma senha para abrir a porta, outra para desativar o alarme e, com isso, transitou pela casa buscando os quadros desejados. Por uma questão de tempo para a operação, ele se dirigiu à mesma porta para sair e recebeu senha do comparsa. Não funcionou, pois a senha de saída não era igual à senha de entrada. O alarme acionou mecanismos transformando a casa num cofre. A sequência do filme mostra as tentativas dele para sair da casa e, a cada nova tentativa, ele destruía coisas na casa e se machucava.

Talvez o aprendizado para as organizações seja esse: governança é uma senha importante para a entrada num certo clube e ter status. E depois? Novas senhas serão necessárias. Quem sabe as sugestões abaixo sejam direcionamentos para possíveis senhas a fim de reduzir ou eliminar a ilusão do controle:

1. Não cansamos de lembrar que o ambiente disruptivo é a única certeza que temos em relação ao futuro. Nesse sentido, o aprendizado do passado continua tendo utilidade, mas deve ser visto de forma diferente. As mudanças na tecnologia, na sociedade e na forma de estruturar e gerir negócios demandam acompanhamento constante de todo o modelo, inclusive de governança.
2. Escopos de auditorias, perfil e direcionamento para conselheiros, políticas de análise risco voltadas para perspectiva futura do mercado e da organização são elementos relevantes que devem ser repensados pelos reguladores. Após a pressão gerada e novas implementações, o declouping ocorre em vários níveis.
3. Governança e gestão são elementos primordiais para a sustentabilidade das organizações. Apresentam interdependência, intersecções, semelhanças, relação hierárquica, mas não são a mesma coisa. Gostaria de usar a palavra “cuidar da organização”, mas estamos mais acostumados com a palavra gerir. Pela lógica de Giddens, agência tem dependência da estrutura, mas é ela que “ganha a guerra”, cuidando da organização. A agência precisa da estrutura e deve ajustá-la quando necessária em relação à expectativa futura. A maior conexão da governança com a gestão pode ser um elemento propulsor de entendimentos e ações benéficas à organização.
4. Embora existam instituições que se propõem a tratar, classificar e ranquear padrões de governança, maior troca de informações pode proporcionar aprendizado adequado, dentro de diferentes segmentos do ambiente.
5. Repensar a palavra transparência, com trade off entre quantidade por qualidade.
6. Aprimoramento do perfil educacional, da base para o topo da pirâmide, principalmente com visão sistêmica do negócio.

Os mais modernos devem estar pensando: vale a pena perguntar para o chatGPT se teremos novas crises sobre a governança? Eu não perderia tempo. Podemos apostar nisso enquanto algo de humano estiver dirigindo as organizações. O que recomendo é a gestão da governança de forma ainda mais próxima para evitar a ilusão do controle.

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