Através do espelho

Por Alecsandra Matias de Oliveira, professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) da Escola de Comunicações e Artes da USP

 06/09/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 15/09/2023 as 16:32

Olhar-se no espelho é uma das ações mais cotidianas da vida contemporânea, mas poucas vezes pensamos sobre a carga simbólica deste objeto. Não pensamos no artefato como meio, suporte e técnica e, menos ainda, nas lendas e significados que o envolvem nas distintas sociedades e na história da arte. Com efeito, o encantamento pela imagem refletida está registrado nas mais diversas culturas e, hoje, é material fartamente encontrado em proposições artísticas.

Algumas investigações, tal como Os reflexos da arte em Inhotim, estudo de Rosana Aparecida Dalla Piazza, discutem o uso da imagem refletida em obras visuais e, outros ainda, chamam a atenção para os seus significados na literatura e poesia. Evidencia-se o poema “O coração dos homens”, que integra o livro Sul, de Veronica Stigger (Editora 34, 2016). Vale a pena buscar essas referências. Nesse contexto, proponho aqui algumas anotações sobre as metáforas que envolvem arte, “verdade” e “ilusão” através do espelho.

No antigo Egito, ao hieróglifo ANKH é atribuído o sentido de vida e, simultaneamente, de espelho. Para os egípcios, o mundo é espelhado: a morte representa a vida além-túmulo – o espelho permite a passagem do visível ao invisível. Associado à deusa Hathor (deusa-mãe), é instrumento de manutenção da beleza e de perpétuo rejuvenescimento, sendo a oferenda mais comum no mobiliário funerário nas mastabas e pirâmides.

Nas demais culturas africanas, a peça está nos aparatos dos orixás, como Oxum (a energia das águas doces e salgadas). O ouro de Oxum é brilho, reflete a luz, deixando tudo mais claro. Seu espelho adornado de ouro dissolve as energias dissonantes; reflete a inveja, o mal; põe “às claras” quem é quem, mostrando a realidade a todos. Ainda sobre a verdade, destaca-se um conto iorubá:

No princípio, existia uma única verdade no mundo. Entre o Orun e o Aiyê, existia um espelho. Tudo que se mostrava no Orun materializava-se no Aiyê, ou seja, tudo que estava no mundo espiritual refletia exatamente no mundo físico. Não existia dúvida sobre os fatos; apenas a verdade absoluta. Esse espelho era chamado de “espelho da verdade”. Naquele tempo, vivia no Aiyê uma jovem que se chamava Mahura. Ela trabalhava dia e noite ajudando sua mãe a pilar inhames. Um dia, a jovem perdeu o controle do movimento ritmado da mão do pilão, tocou forte no espelho que se espatifou pelo mundo. Assustada, Mahura saiu desesperada para pedir perdão a Olorum. Ela O encontrou tranquilamente deitado à sombra do Iroko. Depois de ouvir suas desculpas, Olorum declarou: “De hoje em diante, quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade, porque o espelho reproduz apenas a imagem do lugar onde ele se encontra”.

As metáforas que ligam o espelho à verdade e à ilusão estão na mitologia greco-romana, como não mencionar a história de Perseu? O herói usa do reflexo do seu escudo para não encarar os olhos de Medusa, assim consegue matar a Górgona. Na tela Medusa, 1597, Caravaggio mostra a imagem do monstro de cabelos de cobras refletida no escudo – nada mais tenso do que ver a cabeça decapitada de Medusa e, ao mesmo tempo, tomar ciência de que o reflexo salvou a pele do herói.

O contrário acontece com a história de Narciso. A ilusão proporcionada pelo reflexo mata o herói. À beira do lago, ele vê sua imagem refletida pelo espelho d’água e se joga às profundezas. A interpretação mais corrente do mito nos diz que o rapaz, tomado de paixão, se atirou em busca do objeto desejado. Como ficariam as explicações se pensarmos que, acostumado a ver sua imagem espelhada na íris das ninfas e dos seres da floresta, o herói não teria suportado ver sua imagem distorcida pelas águas? Na pintura Narciso, 1597-1599, Caravaggio nos coloca no instante do encontro do protagonista com seu reflexo. O pintor nos deixa em suspenso: ele se jogará ou não no lago? Pela vontade de Caravaggio, jamais saberemos.

A invenção do objeto espelho é atribuída aos sumérios – há mais de 5 mil anos – e, a partir do mundo das coisas, esse apetrecho ganhou o campo das ideias. Segundo o filósofo Vilém Flusser (1920-1991), o espelho é um instrumento no qual se especula (de speculum = espelho) – aqui, convém mencionar que chamamos de “reflexão” o ato de pensar, questionar ou ainda abordar um tema que nos intriga, por fim, refletimos (somos espelho).

Assim como nos contos e lendas, na história da arte, o espelho-speculum recebe significados ambíguos: às vezes, surge como registro documental; às vezes, é símbolo da sabedoria e da prudência; às vezes, aparece como alegoria da luxúria e da vaidade. Na história da arte ocidental, o espelho está em obras simbólicas (as Vanitas). Nessas, o artefato representa a lembrança da vaidade, presente, por exemplo, na obra Sete pecados capitais, de Hieronymus Bosch. No Jardim das delícias (1480-1490), também de Bosch, se vê uma mulher nua, sentada com um sapo entre os peitos. Ela se vê refletida num espelho nas nádegas de um demônio. O espelho torna-se, então, testemunha da vida e da morte daquela mulher.

Além das metáforas, existem artistas que lidam com as propriedades da imagem criada pelos jogos de espelhos. Nessa seara, está Leonardo da Vinci, que emprega o compasso, o esquadro e os espelhos em seus projetos – ele tem o artefato como mestre fiel para pesquisar os defeitos da pintura e, ainda, as relações entre os objetos e os planos. Para o pintor renascentista, desenhar em frente ao dispositivo era modo de investigação “científica” e filosófica. Não esqueçamos de suas anotações das quais a leitura só é possível através da imagem invertida dos espelhos.

Na famosa tela O casal Arnolfini, 1434, Jan Van Eyck escolhe retratar a realidade através de um espelho convexo – o espectador é incluído na obra pelo reflexo. Naquela superfície, o pintor reproduz o ambiente e a cena no sentido inverso ao olhar do espectador. Na imagem refletida, o pintor se olha. O casal está de costas e na borda do espelho existem citações da Paixão de Cristo. Na parede, ao centro, abaixo do lustre, a assinatura “Jan van Eyck esteve aqui”. O pintor torna-se testemunha da cerimônia matrimonial que enxergamos somente no espelho. Na pintura, o destaque dado ao espelho comprova a distinção social do casal e do pintor, uma vez que é objeto caríssimo à época.

Igualmente, o jogo entre cena, artista e espelho encontra-se na tela As meninas, 1656, de Diego Velásquez. De dentro da tela, o olhar do pintor observa o espaço exterior. Através do seu olhar, o espectador supõe o que Velásquez irá pintar: a cena e os modelos. Seu olhar atravessa o espaço da representação de modo que o pintor também observa o espectador, como se ele fosse o modelo da pintura naquele instante.

Desse modo, as duas pinturas (O casal Arnolfini e As meninas) contêm “o que se vê e o que não se vê”, num jogo espelhado – alguma coisa como o “quadro dentro do quadro”. Ademais, ambas trazem o autorretrato de seus criadores. Em termos gerais, o autorretrato significa para os artistas o “confronto entre si mesmo e o duplo”. Nos dias atuais, as selfies proporcionam semelhante embate e tornam-se instrumentos para a construção de identidades.

A arte nos coloca em dúvida sobre o que é real ou não. Na tela Um bar em Folies-Bergère, 1881-1882, Edouard Manet cria um ar de estranhamento. Nesse trabalho, o espelho é colocado como elemento visual que contribui para esse “desconforto visual”. Ao fundo, o reflexo da modelo sugere que o espectador está, simultaneamente, em dois lugares – algo que não pode existir na realidade. Já a tela de René Magritte, A reprodução proibida, 1937, traz a dúvida sobre a representação. Só o que vemos é o modelo e seu duplo – ambos de costas: é possível existir um espelho à frente da figura em primeiro plano? Mas, se não, por que o livro sobre o balcão parece estar com a imagem invertida? Trata-se de um duelo entre duas realidades impossíveis de coexistirem? Na verdade, é uma simulação que envolve a imagem e o seu reflexo.

Na arte contemporânea, o uso do espelho, muitas vezes, é o lembrete perfeito sobre qual é o lugar do espectador na arte: o dispositivo, como vimos, inclui o espectador na cena e expande o espaço (ele oferece ao bidimensional a ilusão do tridimensional). Alguns artistas visuais o usam para reforçar a sensação de busca do infinito, como em Infinity mirrored room, 2011, de Yayoi Kusama. Nesse trabalho, Kusama coloca espelhos em espaços fechados, criando um fenômeno chamado “efeito de espelho infinito”. Essa estratégia faz a sala parecer maior e, ao mesmo tempo, a instalação espelhada oferece uma visão alucinatória do lugar, integrando o espectador na própria obra de arte.

Anish Kapoor transita entre escalas diferentes e em várias séries. Seus trabalhos trazem películas, espelhos côncavos ou convexos; recessos esculpidos e pigmentados na pedra. Esses vazios e saliências evocam a presença e a ausência, a ocultação e a revelação. Nos seus trabalhos prevalecem os espelhos deformantes em espaços urbanos – são instalações ligadas ao mundo; contemplam aspectos passíveis de serem observados por um público amplo e diverso, promovendo situações de espontaneidade e interação com o espectador. Na obra Sky mirror, parece existir uma transfiguração do conceito da obra por meio do efeito do reflexo. O artista centra-se na relação das formas e na tensão entre o positivo e o negativo, a luz e a sombra, o material e o imaterial.

A instalação Espelho no. 1, de Panmela Castro, traz a tradição do emprego do dispositivo e expande o espaço. É carregada de narrativas, mostra verdades e ilusões e, sobretudo, coloca o público na obra – não apenas a imagem refletida, mas a proposta se completa somente a partir da interação do público. São mensagens escritas e intervenções marcadas na lâmina de vidro metalizado que refletem e fazem refletir – através do espelho a obra se torna médium entre artista e público.

Ao fim dessas anotações – que não pretendem jamais esgotar o tema, mas sim ser provocações para novos e mais aprofundados estudos, retoma-se que das lendas, mitos e metáforas, percebe-se a dualidade entre espelho e natureza; entre o real e o virtual; entre “verdade” e “ilusão”. O ato de olhar o espelho é momento de avaliação e cumplicidade, isso porque ajusta o corpo ao reflexo, ao desejo e, às vezes, ao repúdio. Para a arte, o espelho é um convite cheio de possibilidades, entre elas, a instituição do lugar do espectador na obra.

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Este texto foi motivado pela conversa com Verônica Stigger e Iasmine Novais, no evento “Arte_reflexo coletivo”, SP-Arte Rotas Brasileiras, em 1º de setembro de 2023.

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