Uso de redes sociais em mobilizações populares deve ser visto com cautela

Segundo especialistas, a instrumentalização das redes sociais ocorreu em diversas partes do mundo, nem sempre com bons resultados para a democracia

 09/08/2021 - Publicado há 3 anos
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Não é de hoje que as redes sociais representam suportes expressivos a mobilizações presenciais, como atestado por movimentos em várias partes do mundo – Foto: Gerd Altmann por Pixabay

Entre as grandes mobilizações sociais e populares que tomaram as ruas de diversos locais do mundo nos últimos anos, foi possível notar algumas semelhanças. Entre elas, o uso do ambiente digital esteve entre as principais e se intensificou durante a pandemia, quando a convivência física passou a ser desestimulada a fim de frear o contágio do coronavírus. A prevalência de instrumentos como as redes sociais para mobilizações sociais, porém, deve ser vista com cautela em diversos sentidos.

 

Blecaute digital

Um dos casos mais recentes é o de Cuba. A ilha caribenha enfrentou em 2021 grandes protestos contra o governo local. As ruas cubanas foram tomadas por manifestantes que criticavam a crise econômica e a falta de vacinas contra a covid-19, principalmente. Em represália, o regime do presidente cubano Miguel Díaz-Canel chegou a limitar o acesso à internet para parte da população. Como resultado, foi dificultada a difusão de conteúdo relacionado aos protestos.

A limitação ao uso de redes sociais apareceu também em Mianmar, que passou recentemente por um golpe militar. O país asiático esteve entre as 21 nações que sofreram com os cerca de 93 apagões de internet pelo mundo, segundo a empresa de segurança digital Top10VPN. “É um ato antidemocrático, seja por quem for feito, porque você corta a liberdade de expressão. Você está pressupondo que todas as pessoas que estão usando aquele meio são criminosas”, analisa o professor Marcos Luiz Mucheroni, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo.

Foi constatado no levantamento da Top10VPN que a maioria das interrupções aconteceu em resposta a protestos ou a momentos de agitação civil, como épocas de eleições, sendo geralmente parte de uma estratégia de governos autoritários. “A mídia de rede está indo na direção em que está indo a política mundial, de uma crescente polarização. Isso é preocupante”, continua Mucheroni.

 

O ativismo na história da internet

Segundo o professor Marco Antonio de Almeida, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, o caráter ativista esteve presente desde os primeiros passos dados pela internet. “Desde o início já há essa característica de pessoas mobilizadas, inclusive para garantir que a internet seja um espaço aberto e livre”, aponta. Foi com o tempo que o ambiente digital também passou a ser um instrumento para a mobilização de movimentos “off-line”.

Perguntado sobre como a rápida e volumosa propagação de informações proporcionada pela internet, e mais especificamente pelas redes sociais, contribuiu para a atividade de movimentos sociais, Almeida vê essa análise como difícil, mas afirma: “O que é assunto hoje, daqui a uma semana vai ser esquecido. Aqueles movimentos muito específicos acabam se perdendo nesse tumulto de vozes”.

O professor Mucheroni complementa explicando de onde vem essa diversidade trazida pelas mídias de redes sociais: “A informação na mídia de rede social pode ser designada por qualquer um dos pontos. Todos nós podemos ser ativos”.

 

Redes sociais e o isolamento social

Pelo menos em um primeiro momento, a chegada da pandemia impediu que mobilizações sociais ocorressem com a mesma frequência de anos anteriores. Mas o tempo mostrou uma mudança de rumos. Cuba, Mianmar, Nigéria, Chile e até o Brasil já foram palco de grandes manifestações presenciais nesse período pandêmico. “A gente tem uma ampliação dos movimentos que têm um foco primordial na rede, nessa vivência em um ambiente digital virtual”, analisa Almeida sobre o contexto do coronavírus.

Mas não é de hoje que as redes sociais representam suportes expressivos a mobilizações presenciais. Ainda em 2013, quando explodiram diversos protestos nas ruas do Brasil inteiro, um levantamento da consultoria Serasa Experian apontou que o Twitter contabilizou cerca de 11 milhões de tweets com a palavra “Brasil’ e 2 milhões mencionando “protesto”, entre os dias 6 e 26 de junho. Também foi possível notar que retuítes com a palavra “tarifa” (as manifestações também foram motivadas pelo aumento da tarifa no transporte público em São Paulo) aumentaram minutos antes de conflitos com a polícia nas ruas.

Depender mais desse meio digital pode trazer como consequência a potencialização de certas causas. “A principal diferença é que o ciberativismo é mais difuso que o ativismo tradicional. Você joga uma coisa na rede e não sabe onde ela vai parar. Ela é mais difusa, porque ela pode potencializar qualquer coisa”, explica Mucheroni.

 

Perigos à convivência democrática

Se, por um lado, redes sociais se mostram como ambientes que facilitam a manifestação de indivíduos, por outro, ainda podem existir motivos para preocupação. “O grande risco é a falta de regulamentação. Se, no mundo antigo, nós tínhamos apenas falantes e o resto eram ouvintes e telespectadores, agora todos são falantes. Muitos falantes não estão dispostos a seguir normas de conduta de civilidade, de razoável respeito pelo outro”, aponta Mucheroni, lembrando de casos de fake news e discriminação em ambientes virtuais.

Outros exemplos possíveis ainda envolvem Mianmar, em casos que aconteceram há quase uma década. Em 2012, explodiu na região um conflito entre a maioria budista e a minoria muçulmana Rohingya, no Estado de Rakhine. Na época, o Facebook passou a ser palco de informações falsas. Uma delas partiu de um monge extremista antimuçulmano, o qual denunciava um caso de estupro de uma menina budista por homens muçulmanos, fato desmentido por uma investigação policial da época. Casos como esse fizeram com que investigadores de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) concluíssem que o discurso de ódio no Facebook desempenhou um papel fundamental no fomento da violência em Mianmar, ao não impedir a veiculação de discursos odiosos, por exemplo.

O professor Almeida complementa lembrando da quantidade de dados que permeiam as plataformas digitais: “As pessoas com determinados interesses, tendo acesso aos nossos dados, podem modular informações, fazendo com que informações circulem de forma a nos influenciar a partir desses perfis que eles possuem”. Ele exemplifica lembrando das eleições de 2018 no Brasil e em processos internacionais como o Brexit, que contaram com ampla mobilização de políticos e da sociedade civil na internet. 

“É muito difícil você pensar em organizar movimentos sociais contestatórios que se colocam contra o status quo, sabendo que a sua comunicação é controlada por uma grande empresa que visa basicamente ao lucro. Como se livrar disso, como lidar com isso talvez seja o grande desafio dos movimentos sociais que se utilizam das ferramentas digitais e da internet”, conclui Almeida.


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