Livro traz cartas trocadas entre Pierre Verger e Roger Bastide

Publicação da Editora da USP revela 225 cartas dos dois intelectuais franceses que se especializaram no candomblé

 10/10/2017 - Publicado há 7 anos
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Pai Cosme faz a pintura ritual de uma iaô, candomblé de Pai Cosme, Salvador, Brasil, 1950 – Foto: Reprodução

Dois franceses cuja passagem pelo Brasil determinou suas vidas dali por diante. Um encontro em São Paulo que resultaria em amizade para toda a vida e uma intensa troca de cartas atravessando décadas. Agora, o público tem acesso à relação intelectual e afetiva entre o fotógrafo e etnólogo Pierre Verger (1902-1996) e o sociólogo Roger Bastide (1898-1974) através dessa correspondência.

Diálogo entre Filhos de Xangô reúne 225 cartas trocadas entre 1947 e 1974, com apresentação e notas da etnóloga e Professora Emérita da Universidade Lyon 2, na França, Françoise Morin. Colaboradora de Bastide no Centro de Psiquiatria Social de 1964 a 1973, Françoise reuniu 117 documentos escritos por Bastide e 108 por Verger, que representam toda a correspondência encontrada entre os dois (a pesquisadora afirma que outras 45 cartas se perderam).

“Essa correspondência entre dois especialistas das religiões afro-americanas traça a história da amizade deles e de sua colaboração de múltiplas facetas”, explica Françoise na introdução do livro. “Entre Pierre Verger, fotógrafo que se tornou etnólogo, historiador e botânico, e Roger Bastide, sociólogo, antropólogo e professor universitário”, continua, “uma relação feita de diálogo, confiança, escuta e respeito mútuo construiu-se ao longo dos anos.”

Mãe Senhora, candomblé Ilê Axé Opô Afonja, Salvador, Brasil, 1948-1951 – Foto: Reprodução

Graduado em Filosofia, Roger Bastide atuou em várias escolas do interior da França até chegar ao Brasil, em 1938, para ser professor de Sociologia na USP. Interessado desde criança pelo misticismo, estudou a sobrevivência das religiões africanas entre os descendentes de escravos negros no Brasil e tornou-se adepto do candomblé. Permaneceu no país até 1954, tendo escrito para diversos jornais e revistas e publicado dez livros durante sua estadia.

Vindo de uma família burguesa parisiense, Pierre Verger iniciou suas viagens fotográficas ao redor do mundo aos 30 anos, como o próprio explica, citado por Françoise. “Comecei a viajar não tanto pelo desejo de fazer pesquisas etnográficas ou reportagens, mas por necessidade de distanciar-me, de libertar-me e escapar do meio em que tinha vivido até então, cujos preconceitos e regras de conduta não me tornavam feliz.”

Pierre Verger assistindo a uma cerimônia para Xangô, Ifanyn, Daomé (Benin), 1958 – Foto: Reprodução

Verger chegou ao Brasil em 1946 e conheceu Bastide nesse mesmo ano, conforme relata Françoise. “Em junho de 1946, em São Paulo, Pierre Verger encontrou pela primeira vez Roger Bastide, que lhe falou com muito entusiasmo de sua recente viagem à Bahia. Bastide se interessou pelas atividades do fotógrafo itinerante orientado para a etnografia e aconselhou-o a ir para a Bahia, fornecendo-lhe alguns nomes de pessoas que deveria cumprimentar em seu nome.”

Para a etnóloga, o que impressiona nas cartas é a forma intimista e sem floreios com a qual os dois vão direto ao essencial quando tratam da religião. “Há uma espécie de comunhão entre os dois iniciados nas diversas formas de espiritualidade negra. É claro que a iniciação não correspondia às mesmas expectativas. Em Roger Bastide, correspondia ao que ele chamava de ‘encantamento’, consequência de uma crise de consciência já evocada. Era preciso que abandonasse seu cartesianismo para se deixar penetrar por uma cultura diferente da sua, condição necessária para compreender a filosofia e o misticismo africanos. Para Pierre Verger, era uma maneira de renascer numa família espiritual de tradição africana depois de uma primeira fase de supressão de uma identidade imposta.”

Roger Bastide rodeado de amigos, Cotuno, Daomé (Benin), 1958 – Foto: Reprodução

Essa intimidade pode ser vista, por exemplo, na correspondência de Bastide a Verger datada de 18 de outubro de 1955. “Sua carta foi para mim uma verdadeira festa. Não porque ela respondia a minhas perguntas, mas porque faz algum tempo que estou sufocando. Tenho necessidade de falar de candomblé, e não tenho ninguém com quem possa fazê-lo. Vivo no meio de imagens passadas, de lembranças, de nostalgias. Se você soubesse o que sua carta foi para mim, você me escreveria todos os dias para falar da Bahia, contar-me histórias da Bahia.”

As cartas dão conta não apenas da identificação religiosa entre os dois. Elas testemunham um intenso intercâmbio intelectual e acadêmico, como a correspondência de Verger a Bastide de 18 de dezembro de 1953 mostra. “Obrigado por aceitar fazer a introdução do livro. Sua carta me fez muito bem e me levantou o moral: esse trabalho de redação para o qual não tenho a disciplina intelectual necessária me deprime um pouco e me fez o efeito de um horrível castigo, embora não seja totalmente inútil para mim. A dificuldade que sinto em definir o que eu achava claro em minha mente prova-me bastante isso.”

Em 225 cartas, livro conta 27 anos de amizade e colaboração intelectual entre Pierre Verger e Roger Bastide – Foto: Reprodução

A admiração que um sentia pelo trabalho do outro também é destaque de vários documentos. Na correspondência de 5 de março de 1953, é Bastide quem a manifesta: “Desculpe esta longa carta. Será que ela é suficientemente ‘douta’ para justificar minha inclusão em seu artigo? Mas cada vez que o leio, eu também entro em estado de ‘transe’, de pequeno transe… Suas cartas me fazem reverberar ideias, lembranças, hipóteses de trabalho, novas pesquisas a serem feitas. E lhe lanço tudo isso em desordem, na esperança que talvez alguma dessas ideias não lhe pareça longe demais da verdade”.

Os dois se corresponderam até a morte de Bastide, em 1974. A carta que encerra o volume foi escrita por Verger em 11 de abril desse mesmo ano. “Espero encontrar aí notícias suas, mesmo que seja para me saber perdoado por meu longo silêncio. Lembranças à senhora Bastide e suas filhas, e não duvide de minha velha e fiel amizade.” O professor jamais leu a mensagem, pois morreu na véspera da escrita.

“Ao serem qualificados de ‘inventores da tradição iorubá’ nestes últimos anos”, afirma Françoise, “Roger Bastide e Pierre Verger contribuíram para valorizar culturas negras com frequência desprezadas, e a publicação de sua correspondência mostra a implicação deles como homens que compartilham suas dúvidas, seus entusiasmos e suas convicções. Depois de sua morte, ambos se tornaram ícones venerados nos meios afro-brasileiros. Seus trabalhos são reeditados e amplamente utilizados pelos adeptos do candomblé.”

Diálogos entre Filhos de Xangô: Correspondência 1947-1974, de Françoise Morin (organizadora), Editora da USP (Edusp), 720 páginas.


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