Governança universitária: lições e desafios

Eliseu Martins é Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP

 03/05/2017 - Publicado há 7 anos
Eliseu Martins – Foto: Divulgação / FEA-RP

Texto sobre a obra : Universidade em Movimento – Memória da Crise

Organizador: Jacques Marcovitch. Colaboradores: Alexandre Sassaki; Carlos Antonio Luque; José Goldemberg; Luiz Nunes de Oliveira; Nina Ranieri; Rudinei Toneto Jr.; Sérgio Adorno; Vahan Agopyan. Editora Com-Arte, 258 págs.

 

O ex-reitor da Universidade de São Paulo e hoje Professor Emérito da sua Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade, Jacques Marcovitch, reuniu colaboradores da mais alta estirpe e com destacada experiência em gestão universitária, e mais o autor de uma tese sobre a crise recente da USP, para nos presentear com essa obra histórica e memorável.

José Goldemberg, Professor Emérito da USP e também ex-reitor, descreve no prefácio a história de uma de suas grandes conquistas, com os reitores das coirmãs estaduais, conseguindo com o então governador (1989) a genuína autonomia financeira das universidades paulistas, feito inédito no Brasil. E lembra da recomendação do Decreto 29.598/89 (que instituiu essa autonomia) no sentido de que os gastos com pessoal nunca ultrapassassem 75% do orçamento universitário! Mas lembra a concessão, de 2010 a 2013, de vantagens salariais e outras liberalidades que chegaram a comprometer tais gastos em mais de 100% dos recursos orçamentários da Universidade de São Paulo, obrigando-a a consumir quase toda a reserva constituída anteriormente para outros fins. Em seguida comenta as decisões recentes para se procurar evitar situações como essas.

A Parte 1 da obra começa com Jacques Marcovitch escrevendo inicialmente sobre a recente crise orçamentária da USP e descrevendo a origem e a finalidade da reserva orçamentária criada sob sua gestão (1997 a 2001), que chegou a quase R$ 4 bilhões e foi destroçada na gestão 2010/2013; obviamente comenta o quadro atual e ainda propõe diretrizes para nortear a utilização dessa reserva. Interessante sua sugestão da inserção dos valores originados da Fapesp direcionados aos pesquisadores da USP que não constam formalmente dos informes financeiros da Universidade. Comenta ainda com propriedade ímpar o espírito do docente e pesquisador puro, tão presente na genuína universidade, normalmente alheio a essas questões, com sua preocupação básica voltada à geração e disseminação do conhecimento. Reforça os valores universitários e a posição da USP hoje no mundo. E comenta sobre a instituição do seu Código de Ética.

A memória dos erros que ocasionaram o desequilíbrio financeiro na USP durante o período considerado foi reconstituída com grande clareza técnica e rigor de análise. O ensaio de abertura do organizador e os textos dos demais coautores formam, em seu todo, um guia de governança para futuros dirigentes acadêmicos, especialmente no que diz respeito ao controle orçamentário. Obra de professores, didática e bem fundamentada, é recomendável para alunos de Economia, Administração e Contabilidade, se quisermos nomear apenas três áreas específicas.

José Goldemberg, Professor Emérito da USP e também ex-reitor, descreve no prefácio a história de uma de suas grandes conquistas, com os reitores das coirmãs estaduais, conseguindo com o então governador (1989) a genuína autonomia financeira das universidades paulistas, feito inédito no Brasil.

O zelo pelo erário, obrigação-chave do gestor público, está no centro deste livro referencial, que igualmente se desdobra em questões relevantes como observância de conformidade e formação de quadros para a sociedade financiadora do Estado. Isto amplia consideravelmente o leque de leitores potenciais, situando a leitura em universo muito maior de estudo e interesse.

Vahan Agopyan, da Poli/USP, e Rudinei Toneto Jr., da Fearp/USP, entram nos detalhes do desequilíbrio financeiro, mostrando com clareza o ocorrido, e evidenciam o mérito da autonomia universitária como hoje presente na USP, apesar do acidente recente. Cotejam números financeiros com dados estatísticos interessantíssimos sobre produção de graduados, mestres, doutores, trabalhos científicos e outros, evidenciando um crescimento dessa produtividade bem superior ao da receita orçamentária. Ressaltam as medidas tomadas desde 2014 para a volta à normalidade.

Carlos Antonio Luque, da FEA/USP, discute a competição dos recursos destinados à educação com as demais destinações, bem como as disputas internas ao próprio setor da educação superior paulista incluindo as FATECs. Descreve a metodologia da definição orçamentária das universidades estaduais de São Paulo e trata dos desafios do financiamento às instituições públicas educacionais. Dá-nos uma visão bem clara de onde vêm nossos recursos e o quanto dependemos da economia do Estado paulista.

Nina Ranieri, da Faculdade de Direito da USP, apresenta o conceito de autonomia universitária, a ser exercido nos limites da sua outorga (“autonomia não é independência”), discutindo prós e contras da extensão desse conceito. Descreve a não completa assimilação e as contradições inerentes ao conceito dessa autonomia. Evidencia a dificuldade trazida pela divisão atual das competências legais em matéria educacional (União e Estados). Sua análise dos limites dessa autonomia é assaz interessante e relativamente pioneira. Comenta a não clareza do próprio Estado sobre as medidas de controle dessa autonomia. E conclui com a discussão também importantíssima da relação entre a autonomia universitária e a legislação sobre responsabilidade fiscal, clarificando muito bem a matéria quanto à parte dessa responsabilidade pertencente à universidade pública. Finaliza com recomendações para um maior controle inerente ao exercício da autonomia.

O zelo pelo erário, obrigação-chave do gestor público, está no centro deste livro referencial, que igualmente se desdobra em questões relevantes como observância de conformidade e formação de quadros para a sociedade financiadora do Estado.

Volta José Goldemberg, agora no capítulo 5, para falar da excelência universitária, tratando dos rankings das universidades no mundo, com dados comparativos extremamente interessantes. Efetua análise da produção científica específica da USP, pelas suas diversas áreas, reforçando a pujança da instituição. E entra no mérito do “para que uma universidade” a fim de justificar o desempenho com indicadores.

Luiz Nunes de Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos/USP, descreve toda a origem da Universidade de São Paulo, sua filosofia inicial, e trata do sistema de avaliação de seu desempenho. Traz também outros indicadores sobre a avaliação da produção científica, adentra o campo da análise das tendências quanto à metodologia de mensuração do desempenho. E propõe reformulação no que hoje se pratica.

Sérgio Adorno, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), analisa o êxito e a crise da USP. Ele  discute aspectos históricos interessantíssimos como o da influência do período militar sobre o papel e o direcionamento da universidade, o relacionamento entre a universidade e o mercado, a influência do capitalismo nessa relação, análise das demandas sociais a serem ou não consideradas pela universidade, direcionamento de recursos públicos para atendimento a quais necessidades da sociedade e outros interessantes tópicos. Trata também da relação entre ensino e pesquisa, mostrando a diferença de filosofia, principalmente entre universidades públicas e privadas (considerando as exceções). Não deixa de lembrar dos problemas da especialização disciplinar, das competições entre os diversos grupos, da análise crítica dos efeitos da burocracia e outros pontos.

Na Parte 2, o que temos é o resumo da recente tese de doutoramento de Alexandre Sassaki, orientada por Jacques Marcovitch no Departamento de Administração da FEA/USP, que analisou a origem da crise financeira recente, utilizando tão somente dados objetivos e extraídos de informações totalmente públicas. Clarifica esse trabalho toda a consequência das políticas da gestão 2010/2013, identificando e mensurando o quanto da crise se deve a cada uma das mais relevantes causas.

Luiz Nunes de Oliveira, do Instituto de Física de São Carlos/USP  descreve toda a origem da Universidade de São Paulo, sua filosofia inicial, e trata do sistema de avaliação de seu desempenho.

É estarrecedor verificar o quanto se utilizou de reservas, que são um estoque, destinadas a contingências para custear despesas recorrentes com pessoal que são fluxos perenes, na verdade com tendência a crescer (evolução na carreira, tempo de serviço etc.). O aumento do número de servidores não docentes, as mudanças no plano de cargos e salários de servidores técnico-administrativos e movimentos dentro dessa carreira foram o carro-chefe desse consumo inusitado das reservas. Aliado a isso, a crise da arrecadação de tributos por parte do governo estadual, e chegou-se ao gasto só com pessoal superior à receita orçamentária da USP.  Mas também o crescimento de docentes e a ampliação de benefícios como vale-refeição e auxílio-alimentação em época de falta de dinheiro, bem como a instituição de prêmio de excelência acadêmica nesse ambiente, contribuíram também para o agravamento do quadro.

E tudo isso não com retórica, mas com quadros e tabelas extraídos dos dados oficiais e públicos da Universidade. Atas dos órgãos colegiados evidenciam o frouxo controle exercido pelo Conselho Universitário, pela Comissão de Orçamento e Patrimônio – COP e pela própria Administração Geral, inclusive cedendo à centralização e pressão reitorais.

Culmina essa parte com a proposição de ações para mudar e fortalecer esse fraco controle, como ampliação da atribuição da COP, integração e consolidação dos mecanismos de demonstração das despesas, elaboração de relatórios de execução orçamentária com métricas relevantes e periodicidade trimestral e sua submissão ao Conselho Universitário, planos plurianuais de obras e reformas e outras. Comenta a criação da Controladoria Geral da Universidade e incentiva a produção de trabalhos nesse campo que melhorem o controle e a prestação de contas dentro da Universidade e para fora dela.

Resumindo, temos uma obra com características muito peculiares: explica a antes impensável crise financeira da USP nesta década, nascida de uma gestão equivocada com a utilização de uma reserva financeira que fora criada exatamente para evitar crises. E o faz não com ilações ou hipóteses, mas com fatos. E adiciona a isso dados sobre o papel e o desempenho da Universidade de São Paulo; produz reflexões sobre o conceito da autonomia universitária; também sobre o papel da Universidade e do seu relacionamento com a sociedade, com o mercado, com o poder estatal; cuida de onde vêm seus recursos e da sua prestação de contas à sociedade; trata do vínculo entre ensino e pesquisa; compara a USP com outras universidades no mundo. Ou seja, uma inédita e útil combinação de problemas financeiros discutidos paralelamente a conceitos filosóficos de interesse a quem se preocupa com a universidade em geral e com a USP em particular.

 


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