Santa Vitória, a montanha de Cézanne

Alecsandra M. de Oliveira é doutora em Artes Visuais pela ECA, especialista em cooperação e extensão pela USP e membro da ABCA

 03/04/2017 - Publicado há 7 anos
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Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal
De tempos em tempos, surgem artistas malditos. Parece que nada dá certo para eles! A lista dos atormentados é imensa, entre os mais angustiados estão: Van Gogh e seu amigo Gauguin. Os dois, juntos ou separados, tiveram aventuras exóticas e lances dramáticos, com direito a traição, orelha cortada, juras de morte, internação em sanatório e autoexílio nas Ilhas do Oceano Pacífico. Mas, na lista, acrescento um artista contemporâneo destes dois que foi tão ou mais perturbado: Paul Cézanne.

A vida de Cézanne não chegou nem perto dos grandes escândalos; ele não matou ninguém e tão pouco se matou; foram poucas suas viagens. Passou um tempo em Paris, na juventude, mas não gostou da boemia da cidade. Filho de pai banqueiro, Cézanne tinha recursos suficientes para viver de sua arte – nunca sentiu a sombra da pobreza que rondou os dois primeiros artistas.  Sua mágoa sempre esteve nas grandes dificuldades que enfrentou em ver sua arte reconhecida. Até seu amigo de infância Émile Zola, no romance A Obra, descreveu o personagem principal como um pintor fracassado. Depois desta, é claro que a amizade terminou! Introspectivo e de temperamento instável (às vezes, raivoso), nosso pintor levou uma vida repetitiva totalmente dedicada ao exercício da pintura: como um artesão, seu trabalho era diário e obsessivo.

O mundo de Cézanne era a cidade de Aix-en-Provence e suas redondezas (que o pintor estendia até o Estaque, região à beira-mar, perto de Marselha). Aix-en-Provence, pequena cidade no sudeste da França, foi fundada em 123 a.C., por romanos. Hoje, ainda mantém traçado labiríntico medieval, palácios construídos com pedras douradas e igrejas que guardam tesouros, como telas de Delacroix e murais fascinantes. Porém, a cidade guarda poucas memórias de Cézanne. No museu dedicado ao pintor há pouquíssimos e modestos trabalhos seus. Certamente, não é no museu que se descobre por que Matisse, Picasso e Braque eram fascinados pela pintura de Cézanne e por que muitos dizem que ele antecipou o cubismo e a arte abstrata. Não à toa Matisse e Picasso diziam: “Cézanne é o pai de todos nós”.

A vida de Cézanne não chegou nem perto dos grandes escândalos; ele não matou ninguém e tão pouco se matou; foram poucas suas viagens. Passou um tempo em Paris, na juventude, mas não gostou da boemia da cidade.

Seu ateliê está esplendidamente conservado, isto porque a família e depois colecionadores americanos mantiveram o estúdio como se o artista ainda andasse por aqueles cômodos. Fascinado pelos efeitos do tempo e da luz, Cézanne projetou seu estúdio para recepcionar o sol. Pela janela do ateliê, a vista de Santa Vitória. Ele era apaixonado por essa montanha. Sim, isso mesmo! Um rochedo branco com sombras azuis chamado Santa Vitória. O pintor perseguiu aquela montanha altiva com cume de prata através de 44 pinturas a óleo, 43 aquarelas e até o último desenho, poucos meses antes de sua morte, retratava a sua montanha.

Obsessivamente, o pintor estudou o monte por diversos ângulos, empregando blocos de cor para atingir a profundidade plana, representação da forma e da topografia do lugar. Ele iniciava suas pinturas situando os principais elementos com marcas de carvão e, depois, acrescentava manchas de cor. As formas eram construídas cuidadosamente a partir dos tons das manchas. No exercício da pintura, ele reduzia a paisagem diante de si em uma estrutura essencial, expressa em formas lineares e geométricas (o cilindro, a esfera e o cone); as curvas eram representadas por múltiplos planos uniformes. Geralmente, os planos gerais eram dignos de mais atenção do pintor do que seus detalhes. Porém, a forma da montanha era-lhe especialmente cara.

De fato, a montanha ainda hoje é linda! Sua tonalidade transformada pela luz é uma visão incrível. Para chegar até o rochedo, o caminho do castelo de Tholonet é um espetáculo, de tão bonito. De repente, depois de uma curva, tem-se diante de si Santa Vitória. A paisagem ao redor da montanha é tão fantástica que Pablo Picasso (fã número 1 de Cézanne) comprou um castelo na aldeia Vauvenargues, face norte do rochedo, onde viveu muito tempo e atualmente está enterrado naquele cantinho da Provença.

Pela janela do ateliê, a vista de Santa Vitória. Ele era apaixonado por essa montanha. Sim, isso mesmo! Um rochedo branco com sombras azuis chamado Santa Vitória.

Cézanne fez outros caminhos por aquelas paragens, chamados de trilhas cézannianas. Algumas delas levam até a barragem Zola, construída pelo pai do romancista. Ali o pintor encontrou seus pinheiros retorcidos – frequentes nas suas telas –, o Chateau Noir e a pedreira de Bibemus, de onde saíram pedras douradas dos castelos que estão pela cidade de Aix-en-Provence. Toda essa paisagem ainda está conservada e, realmente, é como Cézanne ainda vagasse por ali.

A fixação pela pintura in loco e pelas paisagens de Aix-en-Provence, de certa forma, pôs fim à vida de Cézanne. Surpreendido por uma tempestade em campo aberto, o pintor trabalhou por cerca de duas horas na chuva. No caminho para casa foi socorrido, porém, morreu dias depois de pneumonia. Foi enterrado no antigo cemitério de sua cidade natal. Pouco tempo depois de sua morte, em 1906, suas pinturas participaram do Salão de Outono, em Paris. O pintor, atormentado por não ter sua obra reconhecida, causou profundo impacto nos artistas de vanguarda do período e seus trabalhos o tornaram um dos mais influentes, tanto do século 19 quanto do século 20.

 


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