“José Gregori esteve em todas as lutas políticas pela democracia e pelos direitos humanos”

O cientista político Paulo Sérgio Pinheiro destaca a sua intensa participação e liderança em todos os movimentos a favor das liberdades no Brasil

 11/09/2023 - Publicado há 8 meses
José Gregori presidia a Comissão de Direitos Humanos da USP desde 2010 – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

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Formado em Direito pela Faculdade de Direito (FD) da USP, no Largo de São Francisco, o jurista José Gregori, cuja missa de sétimo dia foi celebrada neste 11 de setembro, foi um batalhador dos direitos humanos no Brasil, especialmente nos anos de chumbo da ditadura militar e, entre outras inúmeras funções, foi secretário nacional dos Direitos Humanos e ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso. Também foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da USP.

Amigo e companheiro de lutas pelos direitos humanos de José Gregori, o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, da USP, teve um texto em homenagem a ele lido na cerimônia religiosa da missa de sétimo dia e, anteriormente, também se manifestou em página no Facebook da Comissão de Justiça e Paz.

Abaixo reproduzimos, primeiro, o texto lido na missa de sétimo dia e, em seguida, um trecho da nota publicada no site da Comissão de Justiça e Paz:
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“Parem os relógios, desliguem os telefones
Silenciem os pianos e abafemos os tambores
Deixem os aviões voarem em círculos
Riscando no céu a mensagem ‘Ele nos deixou
Achávamos que ele duraria para sempre: estávamos errados”

W. H.  Auden

“José Gregori esteve em todas as frentes das lutas políticas pela democracia e pelos direitos humanos na hora certa em que deveria estar.

Na resistência à ditadura de 1964, ajudando a impulsionar na sociedade civil a viagem sem porto final dos direitos humanos. Desde a primeira hora na Comissão Justiça e Paz de São Paulo, criada em 1972, e dez anos mais tarde na Comissão Teotônio Vilela, com Severo Gomes, Teotônio Villela, Margarida Genevois, Maria Helena Gregori, Fernando Millan, durante trinta anos.

Indo ao encontro do clamor dos familiares dos mortos e desaparecidos, agora no governo federal, graças a sua negociação com os militares e à oposição no parlamento, foi criada por lei em 1995 a Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, CEMDP, com reparação para seus familiares. Essa lei, fruto daquela negociação de José Gregori, foi a pedra angular do processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado brasileiro pelas graves violações de direitos humanos e crimes praticados pelos agentes da ditadura militar. Depois da Comissão virá a criação da Comissão de Anistia.

Na mesma linha apoiou na palavra e na ação a Comissão Nacional da Verdade desde o projeto de lei presidencial até sua efetiva criação. Foi dos primeiros a denunciar o extremismo durante o governo do inominável e logo a  pregar a resistência com vistas a apoiar a derrota do governo de extrema direita nas eleições presidenciais.

Muitos de nós aqui reunidos nessa celebração tivemos com ele  cumplicidade de toda a vida, na hora de tomar decisões, de avançar, de escolher as resistências menores, de definir projetos, contatar  os melhores aliados. E havia uma sede onde essas reflexões ocorriam, era a casa de Maria Helena, igualmente militante dos direitos humanos, e José Gregori, com a participação muita vez de suas filhas, Maria Stella, Bibia e Ticha, que reproduzem os dons de seus pais em seus diferentes e belos percursos de vida.

Essa casa, como me dizia um amigo, funcionava como um pique, como aquele dos jogos de crianças onde os embates cessavam. Ali acorriam desde o guerrilheiro sandinista Daniel Ortega (numa fase melhor que a atual…) até diálogos entre correntes sindicalistas em luta, negociações entre movimentos sociais e governo, correntes políticas adversárias, políticos estrangeiros em visita, lançamento da Campanha das Diretas, entidades de direitos humanos diversas (para a Comissão Teotônio Vilela ali era sua sede).

José Gregori sempre foi a chave central que sustentava os outros arcos da abóbada, das ações, militâncias que nem sempre estavam de acordo entre si. Sua presença foi fundamental na criação da Comissão Arns para fazer face às divisões na “praia dos direitos humanos”, como ele gostava de chamar, por causa da discórdia diante do impeachment. Providencial decisão, pois permitiu que a Comissão participasse de nova resistência a um governo de extrema direita que visava destruir toda a operacionalidade dos direitos humanos, em grande parte construída durante trinta anos com a colaboração de José Gregori.

Com a partida do nosso e meu queridíssimo José Gregori se fecha uma época marcada por seu ecumenismo político militante – raríssimo no mundo nos dias que correm -, fundado nas suas décadas de experiência política a quente. Mesclado com elegância, distinção, delicadeza, sensibilidade, qualidades que sempre elevavam o tom para melhor em qualquer discussão. Tudo banhado num senso de humor finíssimo. Era um criador de frases e comparações criativas originalíssimas ressoando na nossa memória. Mas o fato de José Gregori ter partido não significa que vamos nos esquecer dele, pois sua marca está indelevelmente presente em nossas vidas e em todo o árduo processo de consolidação do Estado de direito e dos direitos humanos no Brasil.”

No site da Comissão de Justiça e Paz, Pinheiro escreveu:

“Fazia sugestões para ações da Comissão Arns como se tivesse todo o tempo à sua frente. Companheiro desde a primeira hora da Comissão Teotônio Vilela, criada em 1983, por Severo Gomes, durante trinta anos. Era o único que tinha um cargo público, deputado estadual, e lá ia ele na frente, abrindo as portas de prisões e manicômios. Faz pouco tempo, em 2019, na Comissão Arns, da qual foi um dos fundadores, abrigou reuniões na sua casa.

Convivemos nos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, desde a preparação dos dois Programas Nacionais de Direitos Humanos, a transformação do 7 de Setembro em dia de Direitos Humanos, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos e tantas realizações. Na preparação do primeiro programa (que assim ele chamou e não plano, como previsto) percorri com ele vários Estados para encontros com a sociedade civil. Quando eu insistia em algumas posições que não iam ser aceitas, me sussurrava: ‘Paulo, essas propostas são um verdadeiro zeppelin de bronze, não vão decolar…’.

Foi o verdadeiro construtor da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos, graças à sua enorme capacidade de negociação com todos os setores, militares e civis. Seu trabalho com a comissão permitiria a reparação para as famílias dos desaparecidos políticos. Na mesma linha, décadas depois, apoiou desde a primeira hora a criação de uma Comissão Nacional da Verdade.

Liderou um grupo de ex-secretários e ministros de Direitos Humanos em visita aos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (que presidia José Sarney), para aprovarem o projeto encaminhado pelo presidente Lula, certamente determinante para a comissão que a presidenta Dilma instalaria em 2012.

Com o desaparecimento do nosso querido Zé Gregori se fecha uma época marcada por seu ecumenismo político militante – raríssimo nos dias que correm – mesclado em elegância, distinção e sensibilidade, com experiência política acumulada, que sempre elevavam o tom para melhor, em qualquer discussão. Tudo banhado num senso de humor finíssimo. Era um criador de frases e comparações criativas originalíssimas.

Felizmente, o fato de ele nos deixar não significa que vamos nos esquecer dele, pois tudo que foi construído em direitos humanos, desde a resistência à ditadura, a construção da transição, até a resistência à extrema direita e a derrota do inominável, traz a marca de José Gregori. A imagem que me vem à cabeça, agora, é o José Gregori empurrando nossa centenária defensora de direitos humanos, Margarida Genevois, no palco do teatro Tuca, em São Paulo, numa manifestação dessa última labuta de resistência.”


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