É difícil fechar ou fazer um balanço nesta última coluna de 2023. Temos um ano em que se conseguiu, por muito esforço, retomar um caminho democrático no Brasil, mas que ainda está muito a perigo. Como nós sabemos, a situação é muito instável no mundo, com dados muito alarmantes. Há poucos dias a capa do UOL tinha como chamada o dado de que a população de rua no Brasil cresceu dez vezes nos últimos dez anos; esse é um dado muito preocupante e assustador. Ao mesmo tempo, nós temos no planeta uma população de quase 8 bilhões de pessoas, numa perspectiva de crescimento sempre exponencial, com uma forma de vida que é baseada absolutamente no consumo. Isso quer dizer esgotamento dos recursos, uso da natureza e do planeta para o bem próprio, sem quaisquer outros valores ou perspectivas de modos de vida hegemônicos que não sejam esses, os do capitalismo e do consumo desenfreado, isso tudo é o que precisa ser revisto.
Ao mesmo tempo, teremos eleição para prefeito em São Paulo no ano que vem e acho que essa é uma agenda muito importante: pensar como é que um programa voltado ao bem público, ao papel do Estado e à ideia de regulação em favor do coletivo possa prosperar num ambiente muito baseado no empreendedorismo individual, que nasceu cada vez mais da dissolução ou do derretimento das perspectivas de solidariedade coletiva, das estruturas sindicais, da proteção do trabalho, da ideia de representação coletiva e luta pelos direitos não atomizados. Esse é um momento muito crítico que, como a gente está vendo, está sendo muito favorecido aos extremismos e à direita.
O mundo está vivendo uma guinada autoritária, inclusive, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa, diferentemente do que acontecia nos anos 1960, que era mais na América Latina. Mas nós temos dinâmicas muito singulares, que têm a ver com a nossa história de escravidão e a perpetuação dessa violência da escravidão nas estruturas patrimonialistas da nossa sociedade, com a confusão entre o público e o privado e a preponderância cada vez maior das milícias crescendo por dentro das estruturas do tráfico de drogas. E essas milícias funcionando como uma estrutura paralela ao Estado e agindo inclusive cada vez mais de forma semioficial, por exemplo, no mercado imobiliário, crescendo os ramos da milícia para todos os setores da sociedade, funcionando como um dreno para o dinheiro, inclusive internacional, que muitas vezes chega no Brasil e é lavado através dessas estruturas, e, em consonância, em grande medida – sem querer demonizar a igreja evangélica -, mas em consonância com o ideal pentecostal do valor individual, do empreendedorismo e da dissolução dos valores públicos. Então, esse é um retrato muito difícil do Brasil atual e é o grande desafio com o qual as novas estruturas políticas têm que lidar e trabalhar.
Espaço em Obra
A coluna Espaço em Obra, com o professor Guilherme Wisnik, vai ao ar quinzenalmente quinta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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