Giselle Beiguelman analisa comercial que usou IA para trazer Elis Regina cantando com a filha

A professora comenta que a publicidade teve efeito no plano afetivo, mas as polêmicas se deram em torno da ética das imagens

 17/07/2023 - Publicado há 10 meses

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O comercial da Volkswagen (VW) que usou inteligência artificial para ressuscitar Elis Regina (1945-1982), cantando em dueto póstumo com sua filha, Maria Rita, deu o que falar, suscitando polêmicas e mobilizando os mais diversos afetos. As polêmicas mais relevantes orbitaram em torno da ética das imagens, colocando em questão a relação da família com sua memória e a descontextualização de uma música composta no contexto da ditadura (Como Nossos Pais, Belchior, 1976) em uma peça publicitária. No plano afetivo, foram incontáveis os suspiros, saudades e emoções registradas nas redes sociais. A pergunta, no entanto, que não quer calar é que fantasmagorias do presente essas imagens deepfake, como as de Elis Regina, produzem? Palavra de várias definições, fantasmagoria refere-se às diferentes fabulações de imagens técnicas que criaram a sensibilidade moderna como uma consciência dividida em que, sincronicamente, o espectador sabe que o que vê não é real e o espanto diante da aparição dos “fantasmas” que o cinema criou ao longo da história. Essa ambivalência entre o real e o fictício, diz Cunning, é o que leva as pessoas em filmes 3D a se afastar ou querer tocar em “objetos” que visualizam na projeção.

A discussão que importa não é se as imagens podem iludir ou falsear, mas sobre as formas de instrumentalização do passado que se interpõem no jogo de temporalidades da propaganda da VW. Há um deslocamento evidente aí da retromania que contaminou a publicidade, o design e a cultura pop do início dos 2000, quando um verdadeiro tsunami de lambretas, cadeiras com pés palito, frigobares coloridos, carros antigos, remakes de filmes e relançamentos musicais fizeram sucesso. Nessa curva histórica que situou o início do século 21 numa esquina do passado, a tônica era uma busca pela saudade do não vivido.

Passadas duas décadas do boom da memória como bem de consumo fácil, parece que o Antropoceno e a perda de perspectiva de futuro foi o que nos restou. Algo que a assinatura da propaganda insinua, avisando que “o novo veio de novo”. Seriam essas as fantasmagorias das IAs? O assombro diante da impossibilidade de acessar o próprio presente, já que o futuro só existe como miragem de um passado que é, ele mesmo, remake do fake.


Ouvir Imagens 
A coluna Ouvir Imagens, com a professora Gisele Beiguelman, vai ao ar quinzenalmente, segunda-feira às 8h, na Rádio  USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP,  Jornal da USP e  TV USP.

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