[Histórias da Ciência] Maud Leonora Menten, uma cientista em tempos misóginos

Por Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq

 20/03/2023 - Publicado há 1 ano

Para compreender a carreira científica da doutora Maud Leonora Menten (1879–1960) em tempos misóginos, é “mister” descrever, em algum detalhe, a sua vida profissional, pois diversos episódios mostram cristalinamente as dificuldades de uma mulher na academia. Neste texto vou me referir a dra. Menten como Maud. Não se trata de desrespeito, muito pelo contrário, a minha imersão na sua vida e nos seus trabalhos científicos tornaram-me um admirador e, sob o peso da sua obra, um amigo.

Pouco se sabe a respeito da família e a sua infância no Canadá. A família Menten se mudou para Harrison Mills, onde a mãe de Maud trabalhava como encarregada da agência local dos correios. Após completar o ensino médio, Maud foi para a Universidade de Toronto, onde obteve um BA (Bachelor of Arts) em 1904 e o Mestrado (MSc) em fisiologia em 1907. Em janeiro de 1906 a jovem Maud publica o primeiro trabalho científico, indexado na Web of Science, que trata da distribuição de íons nas células nervosas, um tema de pesquisa relevante até hoje.

Apesar das recomendações e do seu título, Maud não consegue emprego acadêmico no Canadá por ser mulher e emigra para os Estados Unidos, onde é contratada como assistente de pesquisa no Instituto Rockefeller entre 1907–1908. Ela é coautora de um trabalho que trata do uso de material radioativo no tratamento de câncer, primeira monografia publicada por esse Instituto. Entre 1910 e 1912 teve bolsa de pesquisa na Western Reserve University. Em 1912 publica um trabalho como única autora relacionado com o transporte de íons no sistema nervoso. Em 1911 retorna ao Canadá onde, na Universidade de Toronto, obtém o Doutorado em medicina, sendo a primeira mulher a receber esse título.

Ainda sem trabalho no Canadá, volta a Western Reserve University nos Estados Unidos, onde começa a sua paixão pela Bioquímica. Com recursos próprios, viaja para a Alemanha, para trabalhar com um dos bioquímicos de ponta da época, Leonor Michaelis (1875–1949). A trajetória do Michaelis merece um artigo separado pois, apesar da sua importante contribuição à ciência, nunca teve posição acadêmica no seu país, em boa parte por ser judeu.

O trabalho de Michaelis e Menten, publicado em 1913, é um marco no estudo e descrição das enzimas. As equações que descrevem a catálise enzimática são usadas até hoje, e nenhum livro de Bioquímica deixa de dedicar um capítulo a este tema. O Michaelis foi um cientista muito ocupado e prolífico e é muito possível que todo o trabalho experimental, bem como as ideias básicas da formulação da teoria, foram fruto da imensa dedicação de Maud a ciência e ao trabalho.

Para os muitos, que nunca tiveram uma disciplina de Bioquímica, e os que esqueceram a pincelada recebida no ensino secundário, creio necessário uma breve descrição para situar a importância do trabalho de 1913 que trata da velocidade com que as enzimas aceleram reações químicas nos organismos vivos. Todo movimento, pensamento, ação, sentimento, enfim qualquer ato que realizemos, de forma voluntaria ou involuntária, ocorre numa escala de tempo possível graças a substâncias complexas que permitem que milhares de reações químicas ocorram a grande velocidade.

A digestão, por exemplo, é uma degradação de alimentos que ocorre a uma velocidade compatível com as nossas necessidades de nutrientes e energia. Um abraço requer decisões de todo um sistema consciente, bem como uma série de reações químicas necessárias para efetuar os complexos e coordenados movimentos necessários.

Durante séculos, estes fenômenos foram atribuídos a vontade divina, a forças misteriosas, ou radiações fora da compreensão humana. A história destas substâncias complexas, que permitem que reações químicas lentas ocorram a velocidades compatíveis com a vida como a conhecemos, começa no início do século 19, mas só em 1877 passam a ser conhecidas como enzimas. O mecanismo pelo qual estas enzimas aceleram reações químicas foi atribuído, por muitos cientistas da época, a misteriosas forças vitais. No fim do século 19 se demonstrou que estas substâncias não necessitam da presença de organismos vivos. Que as enzimas são proteínas, polímeros compostos por aminoácidos, e podem ser isoladas, foi descoberto somente em 1923, e a formação de um complexo entre a enzima e o(s) composto(s) a ser modificado, proposta fundamental no trabalho da Michaelis e Menten de 1913, foi demonstrado experimentalmente somente em 1943.

Retornando aos Estado Unidos, Maud obtém o PhD na Universidade de Chicago em 1916 e logo foi contratada como professora assistente na Escola de Medicina da Universidade de Pittsburgh. Em Pittsburgh foi patologista do Hospital da Criança de 1926 até 1950 e professora no Departamento de Patologia da Escola de Medicina, onde só um ano antes de se aposentar obteve a posição de Professora Titular, aos sessenta e nove anos.

Maud, após sua aposentadoria, retornou ao Canada, sem nunca ter optado pela cidadania americana. Continuou pesquisas relacionadas ao câncer no Instituto de Pesquisas Médicas de British Columbia até que sua saúde a obrigou a abandonar o trabalho. Sua última publicação, em 1954, é um estudo de ácidos nucleicos em células de pacientes.

O percurso da Maud, uma cientista brilhante, foi reconhecido muito depois da sua morte, em trabalhos de 2013, centenário da publicação do clássico da enzimologia.

Hoje, se se pergunta para o CHATGpt (ou a muitos bioquímicos) quem é o responsável pela primeira separação de variantes de proteínas por eletroforese, a resposta será Linus Pauling, que, além de ter ganhado o Nobel duas vezes, era um homem. Pois bem, Maud publicou um trabalho sobre esse mesmo tema cinco anos antes de Pauling. Diga-se, claro, que Linus Pauling ganhou o primeiro prêmio Nobel pelo seu trabalho nas propriedades das ligações químicas e o segundo pela sua dedicação a Paz. Decerto, um grau de machismo tira a prioridade de Maud dessa descoberta.

Se bem que muitas das barreiras que Maud que encontrou como mulher parecem ser vencidas, é evidente que a igualdade de gênero na academia está longe de ser uma realidade. Este artigo está dedicado a todas as brilhantes mulheres cientistas que na academia ainda deveriam ocupar mais lugar, e à Iolanda, colega, companheira, mãe e cientista que ainda me suporta.

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