Fotomontagem com imagens de Arquivo Público do Estado de São Paulo e Rawpixel

Solidariedade no cárcere manteve luta feminina de presas políticas na ditadura militar

Pesquisa da USP resgata trajetória de militantes encarceradas no Presídio Tiradentes entre 1969 e 1976, e constata repressão intensificada sobre mulheres

 17/01/2023 - Publicado há 1 ano

Texto: Danilo Queiroz

Arte: Rebeca Fonseca

Lenira Machado, Nair Kobashy, Márcia Mafra e Iara Areia Prado tiveram suas trajetórias de vida e militância, no decurso da ditadura civil-militar no Brasil, contadas em pesquisa da USP. Em sua dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a historiadora Leticia Viana de Morais analisou como a questão de gênero foi determinante para que as medidas de repressão do Estado fossem ainda mais acentuadas sobre as presas políticas.

Letícia pesquisou como se deu a preservação da militância no convívio do cárcere, mais especificamente na ala feminina do Presídio Tiradentes. Contrariando os estereótipos de passividade e fragilidade atribuídos às mulheres, o estudo procurou compreender os mecanismos de partilha na luta feminina, em um período em que pouco mais de 15% das mulheres optaram pela luta armada.

A dissertação, intitulada Assim sobrevivemos: narrativas de militantes presas políticas no Presídio Tiradentes (1969-1976), analisou a trajetória particular de quatro militantes que eram graduandas em cursos de humanidades da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. 

A pesquisadora, que teve a orientação do professor Maurício Cardoso, concluiu que o fato das mulheres estarem em um espaço público majoritariamente ocupado por homens intensificava a violência com que eram tratadas pelo regime militar. A autora enxerga o trabalho como um espaço de memória, vivência e justiça. Em breve, a pesquisa deverá figurar no Portal de Teses da USP.

Leticia Viana é professora e se reconhece também como mãe, administradora do lar, faxineira, cozinheira – funções não remuneradas e pouco reconhecidas socialmente –, além de pesquisadora nas horas vagas - Foto: Arquivo pessoal

Leticia Viana é professora e se reconhece também como mãe, administradora do lar, faxineira, cozinheira – funções não remuneradas e pouco reconhecidas socialmente –, além de pesquisadora nas horas vagas - Foto: Arquivo pessoal

Para Maurício, o trabalho acaba por oxigenar a memória do que o regime militar significou na história do País. “A pesquisa propõe uma retomada na reconstrução de uma memória que necessita ser prolongada”, disse. “Falar da ditadura militar, das violações e das resistências é fundamental para que jamais esqueçamos da barbárie que inúmeras pessoas sofreram”, acrescenta.

Letícia analisou como a atuação de mulheres nas organizações políticas contra a ditadura militar ocorreu majoritariamente em funções vinculadas ao cuidado, apoio e divulgação. “Secretaria, apoio logístico, agitação e propaganda, organização de reuniões eram tarefas comumente femininas”, diz a pesquisadora. “As mulheres ocupavam parte ‘do corpo’ da organização sem grandes resistências desde que ‘a cabeça’ se mantivesse sob controle masculino”, acrescenta.

Maurício Cardoso é professor no Departamento de História Social e pesquisa as relações entre história e produção audiovisual brasileira - Foto: Arquivo pessoal

Maurício Cardoso é professor no Departamento de História Social e pesquisa as relações entre história e produção audiovisual brasileira - Foto: Arquivo pessoal

Diferentemente dos homens, o matrimônio, a gestação, nascimento e aleitamento dos filhos das militantes as afastaram da atuação política ativa. Nos relatos, é possível perceber o processo de masculinização – nas vestimentas, nos assuntos em debate –, que as militantes teriam que enfrentar para serem respeitadas no universo do poder masculino.

As dificuldades para viverem na ilegalidade relegaram a essas mulheres o espaço de silenciamento: a prisão, mais especificamente a Torre das Donzelas. Ali, eram torturadas de inúmeras formas. No entanto, foi também ali que conseguiram fortalecer a luta feminista, compreendendo e resistindo às violências de gênero. Os relatos costumam ser carregados de falas que expressam a ansiedade, o medo e a angústia que passaram. “A partir dos meus estudos e dos testemunhos dessas mulheres, compreendi que naquele momento ser mulher não era só um ‘detalhe’”, conta a pesquisadora ao Jornal da USP.  “Concluí que não existem ‘as mulheres’ como sujeito universal padronizado”, acrescenta.

Pórtico remanescente do Presídio Tiradentes, demolido após as construções da primeira linha do Metrô de São Paulo - Foto: Ana Paula Brito/Memorial da Resistência de São Paulo

Enclausuradas

A história de vida dos que sobreviveram à ditadura passou a ser um importante instrumento para o conhecimento da experiência revolucionária na década de 1960 e das violações dos direitos humanos ocorridas no período pelo Estado brasileiro. Por isso, a pesquisadora decidiu ouvir e analisar as narrativas de mulheres militantes, possibilitando a observação da presença feminina não só como elemento ilustrativo, mas como sujeito de ação e reflexão. 

Leticia dividiu seu estudo em três ciclos de análises: a construção do feminino pelas instituições; inserção das mulheres na militância; reflexões potencializadas no convívio no presídio. Além disso, estruturou o estudo a partir de uma bibliografia mais feminina. “Foi uma ação meio intuitiva, mas quando me dei conta fiz questão de manter. Acho que muitas mulheres já sistematizaram reflexões pertinentes sobre a sociedade”, destaca. 

Como método, a pesquisa analisou testemunhos que fazem parte do acervo do Projeto Intolerância e Resistência: Memórias da Repressão Política no Brasil (1964-1985), uma parceria entre o Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da FFLCH e o Arquivo Edgard Leurenhoth (AEL) da Unicamp, com o financiamento da Fundação Ford. Esse acervo, que possui inúmeros materiais audiovisuais, está disponível no Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (Diversitas) da FFLCH. Para acessar, basta clicar neste link  e contatar a direção do núcleo.

Os relatos dessas quatro mulheres – Lenira Machado, Nair Kobashy, Márcia Mafra e Iara Areia Prado –, após libertadas, foram imprescindíveis para que Letícia compreendesse como se desenvolveu o ativismo feminino de mulheres nos espaços políticos. Assim como está presente em uma canção de Elza Soares, a pesquisadora afirma que sua dissertação procura apresentar as narrativas de perseverança delas. “Eu sou mulher e vou lutar até o fim”, compara.

Lenira Machado

Lenira Machado passou quase três anos no cárcere -
Foto: Memorial da Resistência de São Paulo

Filha de pais comunistas, a militância política fez parte desde o início da vida de Lenira. Em 1960, ingressou na USP em Ciências Sociais e desde então já atuava no Partido Comunista Brasileiro (PCB) e nas ligas camponesas – a contragosto do pai –, além de atuar no movimento estudantil até o golpe de 1964. 

Dois anos depois, em 1966, tornou-se mãe, o que a afastou de uma militância mais ofensiva. Foi presa pela primeira vez em 1971, torturada e depois encaminhada para o Presídio Tiradentes. Após quase três anos encarcerada, integrou-se ao Movimento Feminino pela Anistia, responsável pela criação do jornal Maria Quitéria, lançado em 1978, figurando outro importante episódio de sua militância política que nunca cessou. 

Analisando os relatos de Lenira ainda estudante, a pesquisadora concluiu que havia uma ambiguidade no caráter progressista dos pais revolucionários: comunistas, com costumes conservadores, que a impedia de utilizar, por exemplo, adereços considerados femininos. “A libertária dentro da minha casa era a minha avó, ela rompia todos os padrões de rigidez deles [seus pais]”, afirmou a militante em relato. 

Nair Kobashy

Nair Kobashy atualmente é professora na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – Foto: Reprodução/Torre das Donzelas

Descendente de japoneses, foi militante do PCdoB e na época estava se graduando em Estudos Orientais na USP. Coordenadora da Associação de Moradores do Conjunto Residencial da USP, o Crusp, até a invasão da moradia pelo exército e pela polícia, em 1968, Nair relata a invasão do espaço onde morava como estratégia do Estado para desmobilizar o lócus de maior movimentação política no campus. 

“Era um lugar de mobilização forte, não à toa foi invadido, não à toa foi implodido, ‘por quê’? Porque as pessoas moravam ali, estudavam no campus e moravam ali, estavam juntas, muitas assembleias foram feitas no Crusp”, conta Nair Kobashy em depoimento.

Após a invasão, a estudante não conseguiu mais retornar à Universidade. Soube que estava na lista de procurados pelos militares e que, se encontrada, seria presa. Em seus relatos, Nair também conta sobre as redes de solidariedade que havia entre os estudantes de diversas universidades paulistanas. 

Coordenando clandestinamente o 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), suas falas nos relatos são marcadas pelo medo de violações por meio das ações dos militares com seus colegas. “ Não dá pra voltar. Eu não podia voltar, porque o meu apartamento, inclusive onde eu morava, tinha sido lacrado, dentro do Crusp. Então eu não podia voltar!”, disse.

Iara Prado

Iara Prado atuava nas produções de jornais das organizações de esquerda de que participava – Foto: Reprodução/Torre das Donzelas

Nos relatos, Iara avaliou as lembranças da repressão sofrida, ligada mais pelo seu envolvimento com Antônio Prado Júnior, mais conhecido como Paeco, do que pela sua militância estudantil. Comprometida com as entidades estudantis do curso de História, a estudante começou sua aproximação da militância política ainda no cursinho preparatório da faculdade. “Eu acho que eu entrei na política antes de ter entrado na faculdade. Para ser bem sincera, eu estava em um meio que defendia essas posições, eu era ainda muito jovem, muito nua e crua”, afirmou em relato.

Ela atuou mais diretamente na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), organização brasileira de extrema esquerda liderada por homens, inclusive Carlos Franklin Paixão de Araújo, ex-marido de Dilma Rousseff. Iara se incomodava, por exemplo, das mulheres terem suas atuações reduzidas ao prestígio de seus companheiros na guerrilha, e de serem conhecidas como “mulher de tal guerrilheiro”. Iara foi secretária de Educação no MEC durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, além de atuar na Comissão Nacional da Verdade.

Segundo Letícia, esse sentimento evidencia a desqualificação feminina por parte dos militantes de esquerda, somada à negligência do potencial inovador da presença feminina no espaço político da década de 1960. “Com exceção da Iara, nenhuma das outras mulheres se envolveu com organizações propriamente feministas. Para mim, isso não reduz a importância delas na conquista de espaços para as mulheres numa sociedade machista”, disse. “Analisando os relatos delas na prisão, senti um deslocamento do feminino, do lugar de fragilidade, para o de potência”, acrescenta a pesquisadora.

Márcia Mafra

Na época que estudou na USP, Márcia Mafra se dedicou aos movimentos estudantis -
Foto: Reprodução/YouTube

Outra presa política lembrada pela pesquisa é Márcia Mafra. Falecida, a historiadora atuou diretamente nas organizações estudantis e relatou que seu envolvimento com as atividades políticas foi um processo espontâneo. 

“Foi uma coisa mais ou menos natural, com essa coisa da inquietude daquele momento, muitas coisas acontecendo. Tinha discussão da Universidade, tinha acordo MEC-Usaid [Ministério da Educação brasileiro – United States Agency for International Development], tinha as coisas ruins do curso, enfim. Havia uma ebulição de questões, de ideias, que era mais ou menos natural você se envolver. Em que nível, cada um é um, mas não havia muito como estar fora disso”, contou em um dos relatos resgatados pela pesquisadora da USP.

Militante da Ação Nacional Libertadora (ANL), Márcia participou das ações de mobilização e propaganda da organização, além de ser diretora do grêmio estudantil na época. Ela também esteve presente nas assembleias dos moradores do Crusp, definido como um espaço de efervescência cultural e política, além de moradia de sua amiga Nair. “Havia grupos de teatro, havia o pessoal de música, gente que cantava; a gente tinha sessões de cinema, tinha debates, havia muita atividade cultural”, contou em depoimento. 

Márcia também relatou a importância das atuações políticas que as presas desempenharam antes de serem levadas ao cárcere. “Nós tínhamos alguém que sempre dirigia o coletivo e tinha uma política de cela. Tudo isso foi herdado do Partidão [PCB], das prisões do Estado Novo que o Partidão tinha feito”, contou.

Nair Kobashy está presente em um dos episódios do documentário Ecos de 1968: 50 anos depois, produzido pelo Jornal da USP 

Lenira Machado, Nair Kobashy e Iara Areia Prado estão vivas. Elas também foram convidadas pelo Memorial da Resistência de São Paulo e pela direção do documentário e do portal Torre das Donzelas para contarem suas trajetórias. 

Embora o Presídio Tiradentes tenha sido desativado e demolido em 1973 para a construção da estação Tiradentes do Metrô, as produções audiovisuais a partir das memórias das ex-reclusas tentam reconstruir o dia a dia nas celas e as situações passadas. No documentário, também houve a participação da ex-presidente Dilma Rousseff, que esteve presa com Nair, atualmente professora da USP.

Resistência coletiva

Letícia teve acesso a diferentes relatos que demostram um cotidiano carregado de violências, naturalizadas ou não. “Uma das falas marcantes que expressa isso para mim foi da Márcia Mafra, quando está narrando a vida na prisão: ‘Cometemos um erro crasso, Janaína. Achávamos que éramos iguais a eles, nunca fomos!’”, disse a historiadora em relato. Outros depoimentos analisados pela pesquisa constatam que até mesmo a esquerda política, objeto de estudo da dissertação, omitia os debates sobre as pautas de gênero. 

“A opressão acontece pelo lugar social, então mesmo mulheres que não se identificam como feministas vão sofrer as opressões do patriarcado, vão ter os atributos femininos tidos como fragilidade – como sensibilidade, amorosidade, emotividade –, vão ser condenadas a criarem filhos sozinhas etc.”, conclui a pesquisadora.

O estudo também constatou as consequências do padrão comportamental que as instituições familiares e religiosas desempenharam dentro do presídio. O exercício de sobrevivência em um contexto traumático era sustentado com as atividades que desenvolviam: na preparação dos alimentos, na limpeza das celas e nos trabalhos manuais com tricô e crochê. “Mesmo com o sadismo presente nas torturas, havia um espírito coletivo nos corredores do presídio, evidenciado nas redes de solidariedade construídas entre as presas”, destaca a pesquisadora sobre o cotidiano carcerário, que também se tornou um espaço de reencontro entre militantes.

Pretendendo seguir com a pesquisa no doutorado, Letícia também pontua a atuação das militantes presas no desenvolvimento do feminismo no Brasil. “Existe um feminismo brasileiro? Talvez possa existir quando a gente reconhecer a diversidade de corpos femininos que há em nosso País. Mulheres como sujeito universal padronizado, não, isso não existe!”

Mais informações: leviamo@gmail.com

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