As pessoas que se dedicam a colecionar, preservar e restaurar livros antigos exercem uma função social da mais alta relevância. Com seu trabalho, elas evitam a perda, recuperam e colocam à disposição da sociedade valiosos patrimônios culturais, que dizem respeito à memória, à identidade e às aspirações de povos inteiros. É o caso dos bibliófilos brasileiros Rubens Borba de Moraes e José Mindlin, que transformaram as suas coleções particulares em verdadeiros tesouros públicos.
Esse elogio aos preservadores de livros antigos é o que se depreende da leitura da recém-lançada edição número 2 da Revista BBM, editada pela BBM Publicações, o braço editorial da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP. Com 312 páginas, a revista traz um dossiê sobre bibliofilia, ensaios sobre conservação no Brasil e artigos que abordam obras raras da BBM, além de resenhas de livros. Ela tem como editor o professor Plinio Martins Filho, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Intrínseco à jornada do colecionador, o afeto pode ser entendido como a primeira etapa do processo de produção da memória”, destaca o Editorial da nova edição da Revista BBM, citando as razões mais remotas da formação de acervos bibliográficos – o entusiasmo e o respeito ao livro.
Amor aos livros é o que mais transparece nos seis textos da seção da Revista BBM intitulada Rumos Atuais e Futuro da Conservação no Brasil. Os artigos reproduzem palestras proferidas durante seminário de mesmo nome realizado em 2017, na BBM, em homenagem a Guita Mindin, a esposa de José Mindlin, que era restauradora profissional e morreu em junho de 2006.
Num desses textos, o professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB) Antonio Agenor Briquet de Lemos, ex-diretor do Centro de Documentação do Ministério da Saúde e da Editora da UnB, dá uma boa ideia do que representa o descaso com os livros. Através de pesquisas em jornais, ele constatou que, entre 1880 e 2017, houve notícia no Brasil de 77 incêndios e 21 alagamentos em bibliotecas, em que os acervos foram total ou parcialmente destruídos. No dia 14 de setembro de 1958, por exemplo, a biblioteca do Convento do Carmo, no Largo da Lapa, no Rio de Janeiro, foi tomada pelo fogo. Ela reunia cerca de 15 mil volumes, incluindo pergaminhos e originais raros sobre teologia, história da Igreja e coleções sobre as Cruzadas, todos perdidos. Décadas antes, em 1911, um incêndio destruiu o prédio da Imprensa Nacional, também no Rio de Janeiro, fazendo desaparecer documentos referentes à produção bibliográfica da Impressão Régia. Em agosto de 1945, os 45 mil volumes da Biblioteca Pública do Amazonas, com rica documentação sobre a região amazônica, também foram transformados em cinzas em razão de um incêndio. O mesmo aconteceu em 1968 com cerca de 35 mil obras da biblioteca do Colégio do Caraça, no município de Catas Altas (MG), entre elas edições dos séculos 16, 17 e 18. “Talvez não seja exagero supor que mais de 1 milhão de livros foram destruídos nos diversos desastres e sinistros que ocorreram e ocorrem em nossas bibliotecas”, escreve Lemos.
Mais do que elencar as perdas de patrimônios inestimáveis, no seu artigo Lemos faz propostas para a preservação de bibliotecas e arquivos. “Os casos de sinistros e desastres aqui arrolados devem ser analisados da perspectiva contemporânea, para que deles possam ser obtidas informações que contribuam para que se evite sua repetição”, destaca. “Os manuais, normas e planos de salvaguarda do patrimônio serão inúteis se não forem acompanhados da alocação de recursos financeiros suficientes e compatíveis com a escala e a complexidade da preservação de bens dos quais, em muitos casos, somente temos um parco conhecimento. E, desnecessário dizer, de recursos humanos qualificados.”
Os bibliófilos
Amor e profundo respeito aos livros são sentimentos que transbordam nos bibliófilos, como mostra o dossiê publicado na nova edição da Revista BBM, intitulado “Bibliofilia – Circuitos e Memórias”. Ele também reproduz palestras proferidas num evento de mesmo nome realizado na BBM em novembro de 2018.
Com cinco artigos, o dossiê pode ser visto como uma declaração de gratidão e admiração por aqueles que se entregam a juntar livros antigos. Nele, destaca-se a figura de José Mindlin (1914-2010), a quem a escritora e tradutora Elisa Nazarian dedica o artigo O Amável Senhor dos Livros, incluído no dossiê. Ao longo de mais de 80 anos, Mindlin formou sua coleção de livros – cerca de 60 mil volumes -, que doou à USP em 2005 e hoje forma o acervo da BBM, inaugurada em 2013.
Elisa traça um perfil de Mindlin marcado pela generosidade, pelo afeto e pelo respeito a livros, à arte e a pessoas. “Fui com ele a algumas bienais de artes plásticas e a peças de teatro. Era sempre com paixão que ele se propunha a ir a esses lugares”, escreve Elisa, que trabalhou durante oito anos como funcionária da biblioteca de Mindlin, ainda quando a coleção estava instalada na sua residência, no bairro do Brooklin, na zona sul de São Paulo. “Quando passei a conviver com os Mindlin, ele já tinha 85 anos, mas mantinha a capacidade de se deslumbrar e de se encantar também com pequenas coisas, como quando nos chamava para ver uma orquídea que tinha acabado de desabrochar em seu jardim, ou quando chegava à biblioteca trazendo barras de chocolate para ‘suas meninas’.”
“Mindlin vinha à biblioteca quase diariamente. Tinha grande prazer em receber os pesquisadores e em sugerir obras para consulta. Seu imenso amor por livros incluía a possibilidade de compartilhá-los”, continua Elisa. Ela cita os critérios do bibliófilo ao adquirir acervos que se somariam à sua coleção: “Não comprava nada em língua estrangeira, livros técnicos nem volumes muito danificados. Quando lhe pediam estimativa sobre o valor de um livro, costumava dizer que um livro vale, acima de tudo, o quanto quiserem pagar por ele, não importando que seja o único exemplar publicado, a data de publicação, etc.”.
Outros artigos do dossiê relatam o empenho dos bibliófilos – nem sempre bem-sucedido – na busca por um livro, como é o caso de Descaminhos do Colecionismo, assinado pelo jornalista Ubiratan Machado. No artigo, Machado lembra alguns episódios da sua trajetória como colecionador de obras raras. Ele cita o “fenômeno curioso” causado pelo fato de, em certas ocasiões, as livrarias estarem sob a direção de pessoas que não sabiam avaliar o real valor de um livro. “Ou cobravam um preço excessivo por livros que julgavam raros e que nada valiam ou vendiam obras realmente raras por preço irrisório.” Numa dessas livrarias, contou, ele viu, no fundo da loja, numa prateleira junto ao chão, na seção de “Pássaros”, a coleção completa, com 52 números, do raríssimo jornal O Beija-Flor, editado por Joaquim Norberto entre 1849 e 1852. “Quase dei um pulo de alegria, e aquele beija-flor, vendido a preço de canário da terra, foi piar na minha biblioteca.”
Em outras ocasiões – continua Ubiratan Machado -, o bibliófilo parece receber um presente dos céus. Como ele exemplifica: “A Livraria Brasileira havia comprado uma grande biblioteca. Muitos livros estavam em condição lastimável, mas havia preciosidades bem conservadas. Comprei uns cinco ou seis volumes”. Ao abrir os livros, em casa, ele teve uma agradável surpresa: dentro de um deles, havia um original de Di Cavalcanti, um desenho a nanquim no verso do convite de sua última exposição em Paris. “Raras vezes paguei preço extorsivo por um livro. Raras, pois fui vencido algumas vezes. Mas nunca me arrependi de comprar. Arrependimento só de não comprar”, confessa Machado. “Como a primeira edição de Galinha Cega, de João Alphonsus, que encontrei numa feira do livro e esnobei. Quando me afastei, vi a imbecilidade que estava cometendo. Voltei à barraca, mas o livro já tinha sido vendido. Muitos anos depois, tentei cercar essa galinha, num leilão, mas ela fugiu para outras mãos.”
Por ser uma atividade nobre, a bibliofilia tem uma padroeira, considera Machado. É Santa Wilborada, freira beneditina que viveu no século 10 na Suábia, onde hoje é a Suíça. Machado dá as razões desse título. “No ano de 925, a Abadia de Saint Gall estava cercada por invasores bárbaros que, como era seu costume, ameaçavam queimar tudo. Seria o fim da riquíssima biblioteca, formada por milhares de volumes. Contam as crônicas da época que Wilborada, uma espécie de bibliotecária da casa, enterrou os livros após uma visão. Os bárbaros foram repelidos, mas o mosteiro ardeu como o pavio de uma vela. O corpo da monja, mutilado e desfigurado, foi abandonado em uma pequena elevação, onde mais tarde encontraram os livros intactos”, escreve. “Outra versão, menos romântica, diz que os livros foram transferidos para um mosteiro próximo e que Wilborada morreu com um machado cravado na cabeça, sendo por isso representada pela Igreja com um livro na mão direita e um machado na esquerda. Seja como for, pelo seu heroísmo ela ascendeu à santidade. Como padroeira dos bibliófilos, possivelmente protege-os dos amigos do alheio, do olho gordo dos colegas e, sobretudo, dos chatos que insistem em pedir livros emprestados.”
Tanto quanto os bibliófilos, Cristina Antunes – curadora da biblioteca Mindlin durante 34 anos, primeiro na residência dos Mindlin, depois, a partir de 2013, na Cidade Universitária – foi “uma extraordinária leitora e guardiã dos livros”, como destaca o título do artigo escrito pela historiadora portuguesa Débora Dias e publicado na seção Memória da nova edição da Revista BBM. O texto foi composto com base em entrevistas e conversas informais entre a historiadora e Cristina, feitas em 2017. Nessas conversas, Cristina – que morreu em março de 2019, aos 68 anos – relembra a sua trajetória, desde os anos de formação, em Recife (PE), e a vinda para São Paulo até o trabalho com Mindlin. “Ser uma grande leitora foi também a porta de entrada para o que Cristina considerou a sua experiência profissional decisiva: os mais de 30 anos de trabalho na biblioteca de José Mindlin. Apesar de não ser bibliotecária de formação, ela tinha o requisito principal exigido, lia por prazer”, escreve Débora.
Descrevendo a rotina de trabalho na biblioteca de Mindlin, a historiadora cita que entre as tarefas de Cristina estava receber os pesquisadores que solicitavam acesso à coleção, visitas autorizadas somente depois que ela reunia informações sobre quem pedia para frequentar a casa. “O seu lazer não raro prolongava-se na biblioteca, quando participava dos convívios sociais em torno dos livros, por vezes aos fins de semana”, destaca Débora. “Entre os seus episódios favoritos, o encontro com o escritor português José Saramago, a surpresa de receber o peruano Mario Vargas Llosa ou a correspondência, que perdurou por anos, com o poeta mato-grossense João de Barros.”
Raros e Raríssimos
A nova edição da Revista BBM oferece exemplos práticos da importância, para a cultura, da preservação de livros antigos, que poderiam estar perdidos para sempre. Trata-se de dois artigos publicados na seção Raros e Raríssimos. Um deles se refere a uma raridade poética do século 17: o manuscrito de um poema atribuído a Bernardo Vieira Ravasco, irmão do padre Antônio Vieira, intitulado Saudades de Lídia e Armido, pertencente à BBM. Segundo o autor do artigo, o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Marcelo Lachat, esse poema teve considerável recepção nas letras portuguesas e luso-brasileiras. Dada a dificuldade de localizar originais de Ravasco – poeta quase nunca citado nos compêndios de literatura -, o manuscrito depositado na BBM é “essencial para um melhor conhecimento e uma mais fundamentada discussão das letras (particularmente da poesia) na América Portuguesa dos anos seiscentos”, escreve Lachat. “Preserva-se nesse códice da Biblioteca Brasiliana, e comprova-se com ele, a auctoritas poética que Bernardo Vieira Ravasco tinha no século 17 e que se perdeu nos séculos seguintes entre papéis mal conservados ou mal compulsados. Historicamente apagado sob a sombra do seu ilustre irmão Antônio, reluz, enfim, o poeta Bernardo nessas manuscritas Saudades seiscentistas.”
O outro artigo da seção Raros e Raríssimos é de autoria do escritor e bibliófilo Ésio Macedo Ribeiro, que nele conta como conseguiu comprar, num leilão, um exemplar da primeira edição de A Cinza das Horas, de Manuel Bandeira. Como Ribeiro explica no início do artigo, a possibilidade de encontrar primeiras edições de escritores modernistas brasileiros é especialmente árdua, uma vez que essas edições foram bancadas pelos próprios autores e por isso tiveram tiragens reduzidas. A Cinza das Horas é um caso típico: foi lançado em 1917 às próprias custas de Bandeira, em papel de baixa qualidade e em tiragem pequena. Primeiro livro do poeta, que reúne poemas escritos na sua juventude, ainda influenciado pelo Simbolismo e pelo Parnasianismo, A Cinza das Horas “revela um Bandeira já dono de linguagem própria, expressando as agruras da condição humana, em versos que exprimem as dores do amor e da morte, do desamparo e da solidão”, explica Ribeiro. “Nunca vi esse livro em nenhuma das bibliotecas que frequentei, públicas ou privadas.”
Exemplos da importância de preservar livros antigos encontram-se também em outra seção da Revista BBM, intitulada Estudos BBM. Ela contém três artigos de pesquisadores sobre obras do acervo da BBM. Um dos textos é de João Marcos Cardoso, curador da BBM. Ele discorre sobre um livro publicado em Rouen, na França, em 1551, rico em ilustrações, que relata a recepção pública, no ano anterior, naquela cidade da Normandia, dos soberanos franceses Henrique II e Catarina de Médici – cerimônia que teve a presença de 50 índios levados das terras brasileiras. A primeira edição no Brasil de Prosopopeia, de Bento Teixeira, lançada em 1873, e documentos religiosos do século 18 são temas dos outros dois artigos da seção.
Rubens Borba de Moraes
A última seção da Revista BBM, a que se dá o nome de Publicações BBM, traz duas resenhas de livros lançados pela Editora Publicações BBM. Uma delas, assinada pelo artista gráfico Gustavo Piqueira, destaca o livro As Bibliotecas de Maria Bonomi, de 2017. A obra reproduz 23 xilogravuras que expressam a visão da artista sobre bibliotecas localizadas em várias partes do mundo, como a Ambrosiana, em Milão, na Itália, a Joanina, em Coimbra, Portugal, e a Biblioteca do Museu Britânico, em Londres, na Inglaterra. “Mais do que descrever visualmente edifício a edifício, Maria Bonomi pinça particularidades formais únicas de cada espaço e as utiliza como ponto de partida para a execução de suas xilogravuras”, analisa Piqueira.
Simplicidade Alegre de um Bibliófilo é o título da outra resenha publicada na Revista BBM. Ela é de autoria do editor Claudio Giordano e trata da edição de 2018 de O Bibliófilo Aprendiz, de Rubens Borba de Moraes (1899-1986), o bibliófilo que, após sua morte, deixou os mais de 2.300 raros volumes de sua coleção para os Mindlin. Na resenha, Giordano expõe aspectos da bibliofilia discutidos por Moraes na sua obra. Com isso, traça um perfil do bibliófilo, que se mostra semelhante àquele de José Mindlin. Além do amor aos livros, da gentileza e do respeito no trato com os outros, o autor de O Bibliófilo Aprendiz revela também tolerância com relação aos conceitos de Coleção Brasiliana e Coleção Brasiliense, motivo de disputa entre especialistas. Para ele, Coleção Brasiliana se refere a todos os livros sobre o Brasil impressos desde o século 16 até fins do século 19 e os livros de autores brasileiros impressos no estrangeiro até 1808, enquanto Coleção Brasiliense diz respeito a livros impressos no Brasil de 1808 até hoje. Só que Moraes não tem uma posição radical a esse respeito, e diz: “Mas se um bibliófilo quiser colecionar a torto e a direito Brasiliana e Brasiliense, e formar um verdadeiro coquetel de livros, meu Deus, deixem-no juntar seus livrinhos em paz”.
A edição impressa custa R$ 52,00 e estará à venda na Livraria João Alexandre Barbosa, da Editora da USP (Edusp), na Cidade Universitária, em São Paulo, após o fim das restrições impostas pela pandemia de covid-19.
Mais informações podem ser obtidas pelos e-mails bbm@usp.br e publicacoesbbm@usp.br e pelo telefone (11) 2648-0320.