Minha Vida de Menina transporta o leitor à cidade mineira de Diamantina no fim do século 19 – Foto: Caco Gerken
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Os sonhos, inquietações e as travessuras de uma garota entre 13 e 15 anos, no fim do século 19, entram para o dia a dia do vestibulando. Minha Vida de Menina, diário escrito por Helena Morley, pseudônimo da brasileira Alice Dayrell Caldeira Brant, entrou em 2017 na lista dos livros exigidos pela Fuvest, a fundação que organiza o exame para ingresso na USP. Embora seja um clássico da literatura brasileira, quebra a regra de outros que estão na mesma lista. O vestibulando tem nas mãos um livro para estimular a sua imaginação. Uma linguagem fácil, divertida, que encantou Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa pela espontaneidade. Transporta o leitor à cidade mineira de Diamantina, porém com os seus problemas sociais, econômicos e num momento histórico singular, com o fim da abolição da escravatura e a então recente proclamação da República. Os acontecimentos, no entanto, são contados sob o olhar crítico de uma adolescente.
A primeira edição é de 1942. Foi lançada quando Alice tinha 62 anos. Na apresentação do livro, ela esclarece que os relatos são exatamente os mesmos que ela, menina, escreveu entre 1893 e 1895. “Nesses escritos nenhuma alteração foi feita, além de pequenas correções e substituições de alguns nomes, poucos, por motivos fáceis de entender”, garante.
Minha Vida de Menina, de Helena Morley, é analisada, nesta edição do Jornal da USP, por Jean Pierre Chauvin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, graduado e pós-graduado pelo Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
“Começo lembrando que se trata de uma biografia: gênero discursivo que, neste caso em especial, ganhou foro literário e apelo de um numeroso público leitor”, observa Chauvin. “Estruturado nas memórias reconstituídas por uma adolescente de Minas Gerais, ao longo de três anos, Minha Vida de Menina aproxima duas vozes, por assim dizer: uma que teria registrado periodicamente o que viveu, no final do século 19, outra da mulher que possivelmente revisitou o próprio diário, composto com 40 anos de antecedência. Isso sem contar a possível confluência entre o registro e avaliação dos eventos, o que explica a coexistência dos modos descritivos, narrativos e argumentativos, no livro.”
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Curiosamente, apesar de ser um registro do final do Oitocentos, determinadas concepções e atitudes de Alice, quando adolescente, ultrapassam o âmbito pessoal, a esfera local e assumem caráter universal.
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Helena começa a escrever no dia 5 de janeiro de 1893. Mas se deu a liberdade de narrar o seu dia quando tinha vontade ou se sentia motivada. Há uma diferença de até uma semana ou mais entre os textos. “Não sei se poderá interessar ao leitor de hoje a vida corrente de uma cidade do interior, no fim do século passado, através das impressões de uma menina, de uma cidade sem luz elétrica, água canalizada, telefone, nem mesmo padaria, quando se vivia contente com pouco, sem as preocupações de hoje”, analisou a escritora na apresentação da primeira edição, em setembro de 1942, quando morava no Rio de Janeiro, casada com Augusto Mario Caldeira Brant, com quem teve seis filhos.
“As memórias da Alice-menina são publicadas pela Alice madura. Era esperado que a dicção mudasse, sob o efeito do tempo. Nessa breve apresentação Helena Morley enfatiza que se trata de relato prosaico de um período histórico de Diamantina e arredores, sob a ótica de uma jovem bem instruída e sensível, habituada a captar o instante, convertendo-o em arte”, esclarece o professor Chauvin. “Escrito em primeira pessoa, o relato distancia-se do sentimentalismo. À medida que os registros no diário avançam, percebemos mudanças no modo como a narradora enuncia as coisas. Curiosamente, apesar de ser um registro do final do Oitocentos, determinadas concepções e atitudes de Alice, quando adolescente, ultrapassam o âmbito pessoal, a esfera local e assumem caráter universal.”
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O leitor de hoje ficará surpreso ao constatar que Helena Morley praticou, com quase um século de antecedência, um dos gêneros literários mais vendidos, em nossos dias.
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A família de Helena padece de muitas dificuldades para sobreviver. Mas sua avó, que a tinha como a neta preferida, era muito rica. E o dinheiro era desfrutado e gerido pelo tio. No dia 21 de junho de 1893, escreveu: “No ano da fome eu era muito menina, mas me lembro ainda de algumas coisas daquele tempo. Se eu estivesse maior e mais esperta como hoje, acho que não passaríamos em casa o que passamos naquela ocasião”.
O livro resgata o sabor da comida mineira com toicinho e os aromas dos doces, bolos e rosquinhas. O leitor vestibulando certamente vai se emocionar com o relacionamento de Helena com sua avó. Descreve: “Vovó é a criatura melhor do mundo”.
Os momentos de raiva, os protestos de Alice revelam, como aponta o professor Chauvin, um estilo de vida naturalmente diferente do nosso. “Sem acesso aos aparatos tecnológicos que chegariam décadas à frente, por menor que fosse o território por onde a narradora circulasse, sua perspectiva revela lucidez e resulta em posicionamento crítico perante certos valores e ideias preconcebidas”, pontua. “Um jovem leitor, antenado que está aos novos suportes, interfaces e meios de comunicação – em que se privilegia o imediato –, precisa fazer o exercício de entrar em modo off e se dedicar ao livro. O tempo e a energia que ele dispensar ao livro Minha Vida de Menina farão da leitura uma experiência gratificante e permitirão que ele compare o seu modo de pensar e contestar com as razões e os poderosos argumentos de Helena Morley.”
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