O mensageiro está em uma encruzilhada – e, para muitos, emparedado nesses tempos estranhos. O jornalismo profissional está sitiado pela sucessão imparável de fake news, vê as verbas publicitárias escorrerem por entre os dedos, é atacado por todos os lados por políticos populistas e extremistas (o que pode, inclusive, ser uma redundância) e por negacionistas de todos os naipes. Para muitos analistas, o jornalismo tal qual o conhecemos desde o século passado, com o repórter sendo “o mediador da sociedade”, está em crise. Uma crise, frise-se, histórica, que não coincidentemente anda em companhia da perda de representatividade das chamadas democracias liberais. Na verdade, a sociedade nesse século 21 beira a esquizofrenia tal as idas e vindas que tem vivenciado nas últimas duas décadas, por exemplo. E se a sociedade entra em turbilhão, nada mais lógico que o seu mediador a acompanhe. E para sair desse torvelinho que parece insaciável, o jornalismo profissional precisa achar soluções, novos caminhos, enfrentar seus desafios e criar oportunidades outras que não aquelas tradicionais. Pelo menos é nesse caminho que segue o livro Tempestade Perfeita, organizado pela Editora História Real, braço editorial da Intrínseca.
O volume reúne artigos de sete jornalistas – Caio Túlio Costa, Cristina Tardáguila, Luciana Barreto, Helena Celestino, Marina Amaral, Merval Pereira e Pedro Bial – que destrincham os (des)caminhos do jornalismo atual e procuram apontar as rotas pelas quais a profissão, seus profissionais e – por que não? – os consumidores de notícias devem trilhar para que a mensagem não chegue turvada nem seja deturpada. Convenhamos, nesses tempos atuais, não é tarefa fácil. “Se a democracia está em crise, o jornalismo também está. Sob determinados aspectos a crise é uma só, gerada pelo crescimento vertiginoso das mídias sociais e suas consequências – entre estas, a relativização do conceito de verdade, da informação baseada em evidências”, escreve o editor e também jornalista Roberto Feith no prefácio de Tempestade Perfeita. “Estamos redescobrindo a importância de algo que, até há pouco, parecia tão óbvio que beirava a irrelevância: que sem um sentido compartilhado do que constitui um fato não há futuro nem para a democracia nem para a imprensa”, afirma ele, que foi correspondente da Rede Globo na Europa por oito anos, no final do século passado.
Esse “sentido do que constitui um fato” ao qual se refere Feith não pode ser relativizado. Ainda mais quando mandatários de países como Estados Unidos e Brasil, para ficarmos só nesses dois exemplos, teimam em distorcer verdades e subverter fatos. Donald Trump, nos estertores de seu período errático e perigoso na Casa Branca, teimou em dizer que havia ganhado de lavada as últimas eleições americanas, quando os fatos – sempre eles – iam por um caminho totalmente diferente. E colocaram Joe Biden na Presidência dos Estados Unidos. Mas Trump, esse Houdini da distorção da verdade, nunca se deu por satisfeito – afinal, quando a realidade não se encaixava à sua vontade, ele apelava para aquilo que nomeou como “fatos alternativos”. Que fique bem claro: “fatos alternativos” não existem. Para longe de possíveis eufemismos, o nome disso é “mentira”.
E disso Donald Trump entende bem: segundo levantamento do jornal The Washington Post, nos quatro anos em que foi inquilino da Casa Branca, Trump publicou 30.573 mensagens mentirosas no Twitter. Mas o pior não é ele postar – o que já seria bem sério. É ter gente que acredita piamente naquilo que foi escrito. E replica, como se fosse verdade absoluta. E se são questionados, de quem é a culpa? Do jornalista, é claro.
Não à toa, para trazermos a discussão para um terreno mais tropical, ensolarado e não menos pantanoso, Jair Bolsonaro, sua prole de “zero-qualquer coisa” e alguns de seus ministros e assessores foram responsáveis por 580 ofensas a profissionais da imprensa só em 2020, como registra Roberto Feith. E ele acrescenta, mostrando que a discussão é bem mais ampla e para além da questão ideológica: “Aqui, onde canta o sabiá, o presidente Bolsonaro não só ataca a imprensa e jornalistas, como incentiva seus seguidores a fazê-lo. O questionamento do jornalismo profissional não é exclusividade da direita bolsonarista. O ex-presidente Lula criticou a imprensa com veemência, especialmente depois que eclodiu a Lava-Jato”, escreve Feith no seu longo prefácio. Mas faz uma ressalva: “Com o capitão as agressões alcançam um nível sem precedentes”.
Olhar crítico
A intenção de Tempestade Perfeita, além de analisar com olhar crítico o fazer jornalístico nos tempos atuais, apontar seus acertos e também os seus erros, é fazê-lo de uma forma que o leitor leigo – aquele que não conhece o dia a dia de uma redação nem o cotidiano muitas vezes exaustivo do jornalista – possa compreender bem. Conseguiu. Por mais que os sete autores da coletânea trafeguem por áreas distintas, cada um deles apontando para determinado assunto a ser deslindado, o resultado final mostra como os textos acabam sendo complementares uns aos outros, fazendo do livro um trabalho homogêneo. E importante.
Porque o dedo que aponta o problema também faz parte do conjunto que procura a solução. E, muitas vezes, o problema está dentro do próprio jornalismo, com uma estrutura que, segundo alguns autores, precisa ser revisada – ou redimensionada. O jornalismo brasileiro, afirma o livro, é pautado por jornalistas do sexo masculino, brancos, de classe média. E os temas escolhidos e a forma como são tratados refletem, inevitavelmente, a visão desses profissionais. Luciana Barreto, âncora da CNN Brasil, por exemplo, em seu texto Jornalismo Antirracista, mostra que em 2015 apenas 22% dos jornalistas com carteira assinada no Brasil eram negros. “Os anos em que convivo em redações embranquecidas me permitem dizer que há um impacto imediato da ausência de diversidade no conteúdo que produzimos: falta perspectiva do nosso olhar sobre a notícia. Os ambientes jornalísticos brasileiros são uma espécie de bolha branca com pontos de vista e experiências semelhantes”, escreve Luciana.
É também por esse caminho que segue o artigo Não Mintam Para Nós: Público se Une a Jornalistas em Busca da Verdade, de Marina Amaral, amplificando a discussão. Afinal, se o jornalismo deve atuar como espelho da sociedade, ele deve refletir, na sua composição, essa sociedade. “Ouvir os invisíveis – os indígenas, as mulheres, os negros, os funcionários públicos com baixos salários e alto valor social, como garis, merendeiras, policiais, professoras e enfermeiras, as vítimas da violência policial ou de conflitos fundiários, os adolescentes em confronto com a lei – é fundamental para qualquer tentativa de transmitir uma visão mais completa e coerente da realidade”, afirma Marina.
Uma outra questão importante observada pelos autores do livro é a função dos veículos no formato impresso nesse mundo pós-digital. A criação de conteúdos cada vez mais abrangentes, mais informativos e interpretativos e que possam alçar determinados jornais – os de maior circulação – a um patamar nacional, para longe dos limites regionais. São os casos de publicações como Folha de S. Paulo e O Globo, por exemplo. Além disso, a viabilização e aumento das edições on-line cumprem também esse papel de alcançar um maior número de leitores – e manter as publicações na ativa. Até porque, como lembra em seu texto Caio Túlio Costa, ex-ombudsman da Folha, entre 2011 e 2018 cerca de 80 empresas jornalísticas brasileiras fecharam publicações – em dez anos, 78% dos veículos de imprensa cortaram a quantidade de páginas e 83% reduziram pessoal. Números substantivos e que não se limitam ao Brasil, fazendo eco em várias latitudes do planeta.
Mas, em meio a essa crise aos questionamentos necessários, há possibilidades de ressurgimento e de reorganização. E elas acabam vindo de onde talvez menos se esperasse, em meio ao caos – por causa de um vírus e devido à insensatez de governantes. Como afirma a ex-correspondente em Paris e Nova York do Globo Helena Celestino: “Os sentimentos fortes despertados pela polarização política e pela pandemia de covid-19 nos levaram à busca incessante por informação. Isso fez de 2020 um ano de revitalização do jornalismo e das mídias no Brasil, tanto as tradicionais quanto as startups”. E continua: “Prova são os recordes de audiência e o aumento dos números de assinantes. A GloboNews exibiu o melhor desempenho em seus 25 anos de existência, com 30 milhões de espectadores ligados no canal por assinatura. A audiência do Em Pauta, programa de análise de notícias do canal, aumentou 43%; e o Jornal Nacional, da TV Globo, foi visto por 44,2 milhões de pessoas, o maior público diário em 14 anos”.
Essa busca por informação abalizada e consistente em meio à pandemia e ao assalto das fake news é justamente um dos trunfos da imprensa séria e profissional. “Não é coincidência que os sites e blogs mais acessados tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, em meio a situações extremas como a pandemia que atravessamos, são aqueles que pertencem a companhias jornalísticas profissionais, já testadas na árdua tarefa de selecionar e hierarquizar a informação”, atesta Merval Pereira, colunista de O Globo e comentarista da GloboNews.
Pode parecer, para os menos atentos, que Tempestade Perfeita legisla em causa própria, que são jornalistas defendendo seu ganha-pão. É um pouco disso, é claro, mas vai muito mais além. A imprensa livre é um dos pilares fundamentais de uma democracia, e isso não é retórica. É fato. O mesmo fato que o bom jornalismo deve defender e publicar, a despeito daqueles que enxergam o mensageiro como inimigo e tentam, de toda e qualquer forma, distorcer a mensagem correta, criando um mundo paralelo e muitas vezes belicoso. Mas esses passarão, a tempestade passará. E a imprensa continuará, mas não sem antes fazer uma necessária e sempre bem-vinda autocrítica.