Segundo Virginia Woolf em Um Teto Todo Seu, “a mulher jamais escreve sobre a própria vida e raramente mantém um diário – existe apenas um punhado de suas cartas”. A autora refere-se à dificuldade em encontrar obras literárias produzidas por mulheres nas bibliotecas universitárias inglesas. A inexistência da mulher autora ou a invisibilidade feminina nos arquivos também são temas presentes no dossiê Mulheres, Arquivos e Memórias, publicado no número 71 da Revista do IEB, editada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e lançada recentemente.
O dossiê, organizado pelas professoras Ana Paula Cavalcanti Simioni, do IEB, e Maria de Lourdes Eleutério, da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), reúne artigos acerca da preservação da memória das mulheres artistas e intelectuais em arquivos nacionais e internacionais. Analisando o caso do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, a pesquisadora Patrícia W. Martinho assinala que, dentre os 166 arquivos reunidos, apenas sete são femininos. No caso do IEB, a discrepância é menor: dos 45 arquivos pessoais listados, 13 são femininos, aparecendo nomes como Alice Piffer Canabrava, Anita Malfatti, Aracy Amaral, Lupe Cotrim e Tarsila do Amaral.
Segundo as organizadoras, uma importante contribuição para a divulgação dos arquivos existentes começou a ser realizada em julho de 2017, com publicações sobre os 26 acervos de mulheres que integram os 305 conjuntos documentais privados, guardados desde o século 16 no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro. “Periodicamente a página virtual do Arquivo publica um texto sob o título Mulheres na História, para nos dar a conhecer a história de um de seus fundos femininos, além de palestras sob o título de Arquivo em Prosa, abordando o acervo como um todo, com relevo ao desempenho historicamente constituído pelas lutas feministas”, escrevem as organizadoras, na apresentação do dossiê.
No total são nove artigos que compõem o dossiê, alguns dos quais foram originalmente apresentados no I Seminário Internacional Arquivos, Mulheres e Memórias, promovido pelo IEB, em parceria com o Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc e apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ocorrido em março de 2017. O texto com o irônico título “Como ter sucesso nas artes sem ser um homem? Manual para artistas mulheres do século XIX”, da socióloga francesa Séverine Sofio (CNRS, França), abre o dossiê com um guia de conselhos para que as mulheres artistas possam se fazer reconhecidas em vida e postumamente.
Na sequência, a historiadora da arte Georgina G. Gluzman, da Universidad Nacional de San Martín (UNSAM), na Argentina, mostra que as pintoras e escultoras argentinas tendem a ser pouco reconhecidas pela historiografia da arte, com exceção de Raquel Forner, enquanto o estudo de suas participações nos Salões Nacionais de Belas Artes demonstra uma presença constante e significativa. O processo arquivístico é tema da professora Jaqueline Vassalo, da Universidade de Córdoba, na Argentina, em “Mujeres y patrimonio cultural: el desafio de preservar lo que se invisibiliza”, abordando a questão da criação, organização e acesso aos arquivos públicos e privados. E a pesquisadora Michele Asmar Fanini, pós-doutora pelo IEB, aborda o tratamento da documentação em seu artigo “Júlia Lopes de Almeida em cena: notas sobre seu arquivo pessoal e seu teatro inédito”, que traz à luz o teatro da escritora mais destacada da Primeira República brasileira.
O campo instigante da fotografia é apresentado em dois artigos: “Sistema de arte e relações de gênero: retratos de artistas por Hildegard Rosenthal e Alice Brill”, da professora Helouise Costa, do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, e “El género y la mascarada en la fotografía de María Santibáñez”, da antropóloga da arte mexicana Deborah Dorotinsky Alperstein, do Instituto de Pesquisas Estéticas da Universidade Nacional Autónoma do México. Outros dois artigos tratam de música: Fernando Pereira Binder, da Escola Municipal de Música de São Paulo, aborda a obra da pianista Guiomar Novaes e Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), retrata compositoras brasileiras nos séculos 20 e 21.
Esses artigos, segundo as organizadoras, analisam a partir de temas, linguagens e enfoques metodológicos distintos a presença ou ausência feminina em arquivos existentes. Mas, afirmam ainda, as teorias feministas não se esgotam na contribuição de problematizar as práticas de construção, organização, seleção e institucionalização da memória. Elas também podem ser fomentadoras de novos arquivos. Caso do artigo que encerra o dossiê, “Acervo de Pesquisa, Memórias e Mulheres: o Laboratório de Estudos de Gênero e as ditaduras do Cone Sul”, das professoras Janine Gomes da Silva, Joana Maria Pedro e Cristina Scheibe Wolff, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que desde 2004 coordenam uma equipe de pesquisadores nacionais que vem tematizando o período das ditaduras civil-militares no Cone Sul a partir das questões de gênero.
“No Brasil a memória é, certamente, um ponto sensível. O processo de arquivamento implica escolhas, inclusões, exclusões, omissões, que são visíveis na baixa representatividade feminina nas instituições de guarda de destaque no País. Desejamos que os artigos aqui apresentados sirvam de estímulo para se pensar a importância dos processos de arquivamento de experiências e produções de sujeitos ou grupos sociais invisibilizados”, escrevem as organizadoras. E ainda sinalizam que, “à luz dos acontecimentos do ano de 2018, é preciso que reconheçamos que hoje precisamos lutar não apenas para que as produções femininas sejam percebidas e representadas, mas também por uma política geral de acervos no País que zele por sua manutenção e por sua extroversão para o grande público”.
Ainda na revista
O número 71 da Revista do IEB traz outros quatros artigos. “S. Bernardo (Graciliano Ramos, 1934) & S. Bernardo (Leon Hirszman, 1972)”, que analisa a obra do escritor alagoano e sua transcriação para o cinema; “Moda e vestuário nos periódicos femininos brasileiros do século XIX”, sobre como a “cultura de moda e vestir” passa a ser veiculada nos periódicos do Brasil oitocentista; “O samba é o dom: sobre as velhas-guardas e a presença da dádiva nas relações de sociabilidade”, acerca dessa manifestação cultural para além das agremiações existentes; e “Por uma cartografia sentimental: do imaginário ficcional de Cidadilha à cidade-ilha de Vitória (ES)”, que dialoga com a obra ficcional Cidadilha, de Luiz Guilherme Santos Neves, propondo uma cartografia sentimental da Vitória colonial.
A revista contempla também a resenha do livro Madureira chorou… em Paris: a música brasileira na França do século XX, escrito por Anaïs Fléchet em francês, recentemente traduzido e publicado pela Editora da USP (Edusp). Na seção Documentação, são apresentados os textos “Preservação, acesso e participação no patrimônio cultural: o legado teórico e empírico de Waldisa Rússio Camargo Guarnieri”, sobre a contribuição da museóloga brasileira que tem seu acervo sob a salvaguarda do IEB, e “Os cadernos de Anita Malfatti no IEB”, com destaque para um caderno de 1910, recentemente incorporado ao IEB por meio do Fundo Emilie Chamie. A Revista do IEB número 71 é uma publicação editada pelos professores do IEB Alexandre de Freitas Barbosa, Fernando Paixão e Monica Duarte Dantas.
Revista do IEB, número 71, dossiê Mulheres, Arquivos e Memórias, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, 367 páginas. A íntegra da revista está disponível gratuitamente através deste link.