identidade
A tela “Fundação de São Paulo’, de Oscar Pereira da Silva, retrata tanto um fato histórico quanto determina o que é ser paulista e paulistano
No dia 25 de janeiro de 1554, uma quinta-feira de céu claro e
algumas nuvens, um grupo de 13 padres jesuítas rezou uma
missa histórica na então aldeia de Piratininga – “lugar onde se
seca o peixe”, em tupi – depois de subir a trilha que saía da vila
de São Vicente.
Entre eles estavam os portugueses Manoel da
Nóbrega, Manoel de Paiva – superior do grupo – e Afonso Brás,
além do noviço espanhol José de Anchieta, de 19 anos.
O lugar, uma pequena colina, era ladeado pelo sinuoso e lento rio Tamanduateí (rio do tamanduá, em tupi).
Ali, em uma área de cerca de 2,5 hectares – o equivalente a três campos de futebol –, também era a moradia dos índios guaianás (ou guaianases), que assistiram a celebração dos europeus com tranquilidade.
Na verdade, no começo do século 20, houve um debate acerca de quem seriam os primeiros habitantes da região, os kaiagangs – muito arredios aos europeus – ou os guaianás, mais, digamos, simpáticos. Na tela, a opção foi por retratar indígenas semelhantes aos guaianás, mas com um porte viril, mostrando como os índios paulistas eram melhores.
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A cerimônia é o momento da fundação do Colégio São Paulo de Piratininga, que iria evangelizar e educar os guaianás e que seria o marco fundador de São Paulo – o lugar viraria vila em 1560 e cidade em 1711. A data escolhida – 25 de janeiro – é o dia em que se comemora a conversão do apóstolo Paulo ao cristianismo.
Aquela clareira onde foi rezada a primeira missa de São Paulo é
hoje o Pátio do Colégio
Foto: Reprodução Governo do Estado de SP.
Mas quem conta essa história? É fato que Manoel da Nóbrega já havia estado no Planalto de Piratininga em 1553, e batizado solenemente 50 índios na aldeia de Tibiriçá. No ano seguinte, os jesuítas voltaram a Piratininga para se estabelecer.
A tela que vemos acima – “Fundação de São Paulo”, um portento de 185 cm x 340 cm, hoje parte do acervo do Museu Paulista da USP – é obra do artista Oscar Pereira da Silva (1867-1939).
O projeto foi iniciado em 1903, mas a obra só foi concluída em 1907, mesmo ano em que foi exposta pela primeira vez. O pintor optou por retratar o momento da fundação da cidade de São Paulo porque o estado vivia, no início do século 20, uma extrema exaltação da história paulista como essencial para o desenvolvimento nacional.
O pintor optou por retratar esse momento da história pois, aliado ao crescimento econômico e cultural da cidade, estava em voga um movimento de exaltação do valor dos paulistanos em relação ao restante do País. Algumas instituições, como o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, foram fundadas com o objetivo de construir uma identidade local que colocasse seu povo como um dos principais agentes responsáveis pelo sucesso da nação, como um todo.
Daí a importância da integração entre os europeus -- representados pelos religiosos -- e os indígenas, com protagonismo catequizador para os primeiros. Enquanto a missa é celebrada, os guaianás assistem, alguns deles ajoelhados em sinal de respeito.
A cena também mostra índios subindo uma trilha e indo em direção à missa, como um momento de elevação em busca da catequização.
E apesar de alguns deles portarem lanças e arcos, nenhum é apontado em direção aos jesuítas, em sinal de respeito.
A atitude pacífica dos índios é um importante elemento para o contexto em que a “Fundação de São Paulo” foi pintada. Na tela, os índios demonstram uma atitude de passividade em relação à ação dos europeus, que, por sua vez, estão eretos e são os sujeitos do acontecimento. Tudo indica que os índios estão submissos e aceitando a dominação por via da religião.
Segundo a historiadora e pesquisadora da USP
Michelli Monteiro:
“no nível simbólico, há a apropriação social do território por meio da união do índio com o branco europeu”.
A cena também mostra outros padres, de batina preta, segurando cruzes e benzendo índios adultos e crianças.
Próximo ao padre Manoel de Paiva, que celebra a missa, pode-se ver um europeu em trajes civis. Ele poderia ser João Ramalho, um dos signatários da fundação de São Paulo, por mais que não haja certeza de sua presença no evento.
A obra encontra semelhanças com a Primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, mas a cerimônia retratada por Oscar Pereira da Silva, mais do que referendar um momento inicial de “brasilidade”, procura enfatizar a identidade e a primazia paulistas diante dos fatos históricos.
Tela Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira - Foto: Wikimedia Communs
Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles - Foto: Wikimedia Communs
Segundo a pesquisadora Michelli Monteiro, Oscar Pereira da Silva foi assertivo ao escolher essa missa para retratar a fundação da cidade, pois não há nenhum documento ou depoimento a ser comparado, ao contrário da obra de Victor Meirelles que tem a carta de Pero Vaz Caminha como testemunho. Portanto, segundo ela, a obra foi tida como documento e, desde então, é debatida em conferências e artigos que buscam um diálogo intelectual com o imaginado na tela.
O que chamamos hoje de identidade paulistana (e paulista, por extensão) é um amálgama composto por várias nacionalidades, raças e credos, que se forjou ao longo dos séculos. E o passo inicial foi aquela missa retratada por Pereira da Silva, ao colocar sob o mesmo céu índios e religiosos europeus em um perfil definitivo.
Fontes:
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo, de Oscar Pereira da Silva: trajetórias de uma imagem urbana. Dissertação de Mestrado. FAU/USP. 2012
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo: a construção de uma representação urbana na pintura histórica. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História (Anpuh). 2011
MONTEIRO, Michelli. Fundação de São Paulo: a origem da cidade representada por Oscar Pereira da Silva e Antônio Parreiras. VII Encontro de História da Arte. Unicamp, 2011
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