“Entre os braços e o cérebro”: profissionais brasileiros expõem realidade do trabalho no exterior

Pesquisa revela motivações e desafios dos emigrantes brasileiros qualificados que buscam melhor perspectiva de vida no exterior

 Publicado: 03/04/2024

Redação*

Pesquisa contextualiza o fenômeno da “fuga de cérebros” em meio a um período de instabilidade política e econômica no Brasil, no qual políticas e programas de incentivo à formação universitária e em ciência e tecnologia foram descontinuados – Foto: Denise Guimarães/Esalq

A crescente tendência de “fuga de cérebros” entre profissionais brasileiros qualificados ganha destaque em uma nova pesquisa desenvolvida no programa de pós-graduação em Administração da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, em Piracicaba. A dissertação, que considera dados de 2015 a 2020, examina os motivos por trás dessa migração e os desafios enfrentados pelos brasileiros mundo afora, como a inserção em trabalhos não qualificados, a chamada “realidade de braços”. Ao contrário da atenção limitada que o tema recebeu até agora nas universidades, este estudo busca entender a fuga de cérebros a partir de uma abordagem qualitativa, dando voz aos emigrantes e explorando suas motivações, experiências e desafios.

De autoria do economista Guilherme de Souza Campos Portugal Santos, a pesquisa contextualiza o fenômeno em meio a um período de instabilidade política e econômica no Brasil, no qual políticas e programas de incentivo à formação universitária e em ciência e tecnologia foram descontinuados.

Com base em entrevistas semiestruturadas e na técnica da “análise de conteúdo”, o pesquisador conversou com brasileiros que estão morando atualmente em países como França, Alemanha, Estados Unidos, Irlanda do Norte, Reino Unido, Portugal, Hungria, África do Sul, Emirados Árabes, Bélgica e Austrália.

Padrão de vida
De acordo com a pesquisa da Esalq, a plataforma online Diáspora Científica do Brasil realizou um levantamento de dados contabilizando 1.487 cientistas brasileiros desenvolvendo pesquisa em mais de quarenta países, sendo EUA, Canadá, Alemanha e Reino Unido os mais expressivos na contagem. Já o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), uma Organização Social supervisionada pelo Ministério da Ciência Tecnologia e Inovações (MCTI), estimou em 2023 que 6,7 mil cientistas deixaram o Brasil nos últimos anos.

Os resultados do estudo revelam que a principal motivação para a emigração é o desejo de alcançar um melhor padrão de vida, caracterizado pelo maior poder de compra da remuneração no exterior e pelo equilíbrio entre trabalho e tempo livre. Isso proporciona aos emigrantes uma sensação de segurança financeira, física e psicológica nos países de destino. No entanto, os desafios não são negligenciados. A intolerância, a xenofobia e as dificuldades de adaptação cultural surgem como obstáculos significativos para os emigrantes. Além disso, muitos entrevistados destacam a superioridade do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro em comparação com o acesso à saúde nos países estrangeiros.

Segundo o autor da pesquisa, na perspectiva dos profissionais entrevistados, encontram-se categorias que corroboram com a predominância dos estudos sobre o tema, como ganhos socioeconômicos e um aumento nos níveis de renda, chamada aqui de “realidade de cérebros”. Também encontra-se outros aspectos, que fogem do mais usual dentro da teoria do brain drain e da decisão de imigração, revelando uma sensação de maior respeito à “dignidade” mesmo em experiências profissionais não qualificadas nos países de destino quando comparadas às experiências profissionais qualificadas vividas no Brasil, chamada aqui de “realidade de braços”.

Braços X cérebros

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“Ou seja, há uma parcela de ‘cérebros’ que se submete à categoria de ‘braços’ em sua nova jornada profissional, como apresentado por 43,5% dos entrevistados”, complementa Santos. É o caso de uma das entrevistadas (os nomes são preservados) que, apesar do seu mestrado em Literatura, atuava na época da entrevista trabalhando como repositora de supermercado na Irlanda do Norte. Segundo ela, sua nova vida lhe dava a chance de equilibrar seu tempo e preservar a saúde. “Posso resumir [sair do Brasil] em uma expressão só, ‘falta de perspectivas’. E com toda essa falta de perspectiva começou a adoecer fisicamente e mentalmente… O que fez a gente se mover”.

“Essa realidade aponta para um panorama complexo, pois é visível uma capacidade produtiva e intelectual ímpar subutilizada na sociedade brasileira, levando à desistência de sonhos, talentos e carreiras, traduzido por um ‘brain waste’, ou seja, um desperdício de talentos”, reforça o pesquisador. A falta de perspectiva, aliás, é destacada na fala da maioria dos entrevistados como razão maior da fuga para o exterior.

Uma das entrevistadas é uma cientista que, na época que conversou com o pesquisador, já estava na Holanda há um ano e meio. Ela conta que o que a motivou a sair do Brasil foi a falta de perspectiva. “O que me motivou foi que quando eu comecei o doutorado, em 2017, houve muitos cortes, e vi a decadência da pesquisa, a indústria também não é como no exterior, e eu queria desenvolver algo novo, e comecei a ver falta de possibilidade de liberdade de pensamento para desenvolver alguma coisa nova”.

Para o autor da pesquisa, essas descobertas fornecem insights valiosos sobre um fenômeno complexo e multifacetado. “Compreender as motivações e os desafios dos emigrantes qualificados brasileiros é fundamental para formar políticas públicas e estratégias de retenção de talentos”, afirma. Durante a realização do estudo, o autor recebeu bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O estudo contou com orientação da professora Eliana Terci, do departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq.

*Caio Albuquerque, da Divisão de Comunicação da Esalq, adaptado por Júlio Bernardes


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