Processos disciplinares das universidades também precisam de análise sob a perspectiva de gênero

As universidades precisam cada vez mais trabalhar temas voltados para a perspectiva de gênero, violência contra a mulher, capacitismo, entre outros, importantes para a formação do cidadão e da cidadã

 20/04/2023 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 24/04/2023 as 9:30
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Existe uma necessidade premente que as instituições de ensino superior passem a trabalhar com temas voltados para a perspectiva de gênero – Foto: Freepik
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As instituições de ensino superior estão inseridas na sociedade e acabam reproduzindo a violência vivenciada por ela. Nesse caso específico, atos violentos podem ser praticados por docentes, discentes, técnicos administrativos e terceirizados, mas esses acontecimentos, geralmente, ficam restritos ao ambiente acadêmico, ou por medo de represálias ou de exposição e julgamento de toda a comunidade que, em razão do patriarcado e do machismo, tem a tendência de culpabilizar a mulher pelo assédio sofrido. Outro fato que incentiva a falta de denúncias é que muitos processos terminam sem nenhum tipo de punição aos agressores.

Carolina Costa Ferreira – Foto: Arquivo pessoal

Diante desse cenário, o grupo de pesquisa do Observatório de Direitos Humanos, coordenado pela professora Carolina Costa Ferreira, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), após diversos estudos, resolveu reescrever, sob o ponto de vista feminista, um processo administrativo disciplinar no qual um professor foi denunciado por alunas que sofreram violências morais e sexuais, no âmbito de uma instituição de ensino superior do País. A professora Sirlene Moreira Fidelis, da Universidade Federal de Jataí, Estado de Goiás, é a entrevistada de Fabiana Severi para falar sobre essa reescrita no Mulheres e Justiça desta semana.

Inicialmente, diz a professora, é importante salientar que esses processos administrativos disciplinares são sigilosos. “Além disso, enquanto na Justiça o processo é analisado e julgado por um único juiz ou juíza, no processo administrativo o relatório final é conduzido por três servidores da instituição, que podem ser leigos em Direito, e o relatório é apenas sugestivo, pois a comissão não possui poder para punir.”

Fabiana Severi – Foto: CDHM/USP

O grupo fez um relato do caso com perspectiva feminista, analisou se os autos continham estereótipos de gênero tais como: se a mulher havia bebido, que roupa estava usando, se houve o suposto consentimento e se a tomada de depoimentos das testemunhas teve escutativa. “Todos esses estereótipos foram percebidos na reescrita.”

No podcast, a professora Sirlene diz, ainda, como é a condução dos processos disciplinares e quais diretrizes eles seguem. Essas diretrizes, afirma, “não trazem recomendações para utilização de convenções internacionais de direitos humanos das mulheres, nem de legislação nacional que trata da temática, dificultando com isso a condução dos processos administrativos disciplinares”.

Sobre os resultados do processo analisado, a pesquisadora diz que o docente foi punido e, como consequência, perdeu o cargo, com isso, pode-se dizer que ele atingiu sua finalidade. “Foi confeccionado um bom relatório, entretanto, nele apareceram termos e procedimentos que deveriam ter sido evitados para que os estudantes e as estudantes não sofressem revitimização.” 

Ampliando debates sob a perspectivas de gênero

Para Sirlene, existe uma necessidade premente que as instituições de ensino superior passem a trabalhar com temas voltados para a perspectiva de gênero, de violência contra mulher, racismo, capacitismo, entre outros temas importantes para a formação do cidadão e da cidadã. “Só assim teremos pessoas qualificadas para trabalharem no sistema de justiça, nas instituições de ensino superior e na sociedade como um todo. Nesse processo, por exemplo, em razão da morosidade institucional, as estudantes fizeram denúncia pública, ocasionando a revitimização.”

Sirlene Moreira Fidelis – Foto: Reprodução

Outro resultado de seu trabalho, segundo a pesquisadora, foi mostrar que é possível ampliar as reescritas para o âmbito dos processos administrativos disciplinares, ou seja, para outras áreas do conhecimento além da judicial. “Por fim, é necessário que a Controladoria Geral da União incorpore em seu manual as legislações internacional e nacional de direitos humanos das mulheres, para que as comissões possam utilizá-las em seus relatórios finais e para que os processos sejam conduzidos com perspectiva de gênero.” 

Ainda como resultado, a pesquisadora diz que a comissão do processo administrativo disciplinar deveria ter apontado as responsabilidades e as recomendações pertinentes à universidade, lembrando que a instituição é um ambiente de aprendizagem, de promoção de desenvolvimento pessoal e profissional de todas as pessoas ali inseridas. “Nesse sentido, na promoção do direito fundamental à educação é importante que, além dos espaços de acolhimento, a universidade reconheça sua responsabilidade e tente minimamente indicar espaços de debates, de prevenção e de reparação às vítimas de abusos de assédios e violências sexuais de forma geral.” 

Para a pesquisadora, a diferença entre a decisão do processo administrativo disciplinar e a reescrita não foi o resultado final de ambas, no caso, a demissão do servidor público, mas, sim, a preocupação com a fundamentação do relatório da comissão. Na reescrita, foram utilizadas normativas internacionais, a Constituição Federal, protocolos e recomendações associadas à perspectiva de gênero no País, além de julgados da Corte Interamericana de Direitos Humanos, documentos que ressaltam a importância do acolhimento à vítima de violência sexual. “A nossa fundamentação foi muito mais ampla, procuramos entender o que significa um caso de violência sexual num ambiente universitário e o papel da comissão que analisa o processo administrativo disciplinar, dessa maneira é essencial olhar para as provas do processo, também com perspectiva de gênero.”

A série Mulheres e Justiça tem produção e apresentação da professora Fabiana Severi, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, e das jornalistas Rosemeire Talamone e Cinderela Caldeira - Apoio: Acadêmica Sabrina Sabrina Galvonas Leon - Faculdade de Direito (FD) da USP Apresentação, toda quinta-feira no Jornal da USP no ar 1ª edição, às 7h30, com reapresentação às 15h, na Rádio USP São Paulo 93,7Mhz e na Rádio USP Ribeirão Preto 107,9Mhz, a partir das 12h, ou pelo site www.jornal.usp.br

 


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