Revogar saídas temporárias pode violar direitos constitucionais de pessoas privadas de liberdade

Segundo Maurício Stegemann Dieter, o projeto aprovado pelo Congresso é desumano e possui poucas chances de sucesso

 09/09/2022 - Publicado há 2 anos
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Quanto mais tempo uma pessoa fica presa, menos condições ela encontra de retornar ao convívio em sociedade – Foto: Reprodução/Freepik
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A Câmara dos Deputados aprovou, no início de agosto, o projeto de lei que veta a possibilidade de pessoas privadas de liberdade saírem temporariamente das penitenciárias. O texto agora vai para o Senado. 

A saída temporária precisa ser aprovada por um juiz e só é permitida para presos do regime semiaberto com bom comportamento e que já tenham cumprido uma parte da pena. Ela também é liberada por até uma semana e no máximo cinco vezes por ano. O doutor em criminologia e professor do Departamento de Direito Penal da USP, Maurício Stegemann Dieter, explica que as penas privativas de liberdade são cumpridas em três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Nesse cenário, a Constituição da República estabelece como atividade fundamental da pena a progressão de regime.   

Como fica a ressocialização? 

Maurício Stegemann Dieter – Foto: Reprodução/Direito-USP

“A saída temporária é uma possibilidade dentro do cumprimento da pena da pessoa manter ativo contato social, com a perspectiva de uma função ressocializadora”, afirma o professor. No sentido de retornar ao convívio social, a Lei de Execução Penal determina que a saída tem a finalidade de permitir que o preso visite a família e conclua o ensino regular e o ensino superior, além de ser um estímulo ao bom comportamento.

Segundo Dieter, quanto mais tempo uma pessoa fica presa, menos condições ela encontra de retornar ao convívio em sociedade: “Os melhores esforços de ressocialização conseguem hoje atenuar os efeitos pernósticos da prisão, ou seja, eles diminuem o sofrimento prisional”. Quando as saídas temporárias trabalham com datas como o Natal, que reforça vínculos, elas inscrevem o sujeito em uma época que “cativa pela solidariedade, pelo vínculo comum”. 

 

A questão da constitucionalidade

As saídas temporárias ainda possuem êxito no índice de regresso. Conforme dados da Secretaria da Administração Penitenciária, na saída temporária do Natal de 2020, por exemplo, aproximadamente 95% das mais de 31 mil pessoas que tiveram direito a sair da penitenciária retornaram a ela no período estipulado. 

Na argumentação do professor, isso se deve ao próprio período natalino, o qual, em grande parte das vezes, cria um ambiente mais favorável para o exercício do perdão e do reencontro familiar. Para ele, é discutível se o projeto que revoga esse direito é constitucional, pois, de acordo com o artigo 5º da Constituição, “nenhuma pena passará da pessoa do condenado”. “Mas, se eu fosse condenado à prisão, minha família iria sofrer. Eu iria perder contato, talvez, com os meus filhos. O Estado brasileiro tem que ajudar essas pessoas a não sofrerem indiretamente a prisão”, declara.  

Nesse sentido, há um caráter político de interferência na pena: “Se isso faz parte do sistema de progressão de regime, da lógica para evitar os efeitos deletérios da prisão, interromper essa expectativa parece violar o direito fundamental dessas pessoas, porque, quando elas foram condenadas, elas tinham expectativa concreta de que poderiam refundar seus laços e ver os seus filhos em momentos episódicos importantes”. 

Especialistas da criminologia não descartam haver relação entre a aprovação do projeto com a proximidade das eleições, já que o endurecimento do sistema carcerário tem, frequentemente, grande apelo popular.

Possíveis resultados

Na opinião do advogado, o projeto não possui muita chance de sucesso, devido às condições atuais do sistema penitenciário e às consequências da nova medida para as pessoas privadas de liberdade. Ele informa que o Brasil passa por um déficit de instalações e vagas do regime semiaberto: “Agora eles [o Congresso] vão fazer com que as vagas do semiaberto sejam ainda mais difíceis, porque não vai ter saída temporária, então tem tudo para ser uma lei que não vai funcionar”. 

“Se eu te digo ‘olha, o semiaberto é uma fase de transição’, mas eu torno ele mais rigoroso, se você poder sair do fechado, você vai correr o risco? Não vai. O efeito colateral disso é que seja um risco e cause uma evasão maior”, completa.  

Por fim, Dieter pensa em uma alternativa mais plausível para o contexto prisional atual. Em vez de superlotar as penitenciárias e aumentar a agressividade e o inconformismo das pessoas privadas de liberdade, é necessário se preocupar em descriminalizar: “A gente tem que diminuir a população prisional, até para poder se concentrar nos crimes realmente graves”. 


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