Gênero “true crime” pode gerar discussões sobre a sociedade, mas abordagem exige cuidados

André Komatsu e Marcelo Nery enxergam que as produções sobre crimes reais, se ultrapassarem o caráter de entreter o público, podem trazer reflexões e discussões importantes acerca de questões sociais

 28/09/2022 - Publicado há 2 anos
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As produções devem ser cuidadosas na hora de narrar os fatos, pois elas podem impactar negativamente as famílias das vítimas – Fotomontagem com ícones Wikimedia – Arte: Ana Júlia Maciel/Jornal da USP
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As produções do gênero true crime, obras que contam com investigações e depoimentos de crimes reais, tornaram-se a grande febre dos últimos tempos. Em junho, o assunto nas redes sociais era o podcast A Mulher da Casa Abandonada, produzido pela Folha de S. Paulo e que investiga a história de uma moradora misteriosa do bairro de Higienópolis. Já em julho, foi a vez do documentário Pacto Brutal, relembrando o assassinato da atriz Daniella Perez. 

Por que esse gênero é tão interessante?

Mesmo não sendo comum a procura por esse tipo de produção para relaxar e distrair a mente, o true crime sempre foi abordado, por exemplo, em canais do YouTube, com milhares de inscritos. André Komatsu, doutor em Psicologia e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, explica que ver como a vítima consegue se salvar de uma pessoa violenta ou escapar de um cárcere privado são exemplos do que pode despertar o interesse de alguém pelo gênero: “Tem gente que está ali para ver estratégias de sobrevivência que possam ser úteis em uma situação extremamente improvável de acontecer na vida pessoal da maior parte das pessoas”. 

Outro gatilho para o interesse é a possibilidade de entender as peculiaridades dos autores do crime. “Tem vários interesses, desde pessoas que estão buscando identificar características da personalidade do criminoso até pessoas em busca da justiça social para ver qual foi o fim desse criminoso”, afirma o psicólogo. 

Mas o envolvimento pela morte parece ser algo intrínseco ao ser humano, de acordo com ele, desde, por exemplo, os gladiadores postos para lutar pela própria vida, e as punições em praça pública.

Possíveis problemas

Para Marcelo Nery, doutor em Sociologia e também pesquisador do NEV, algumas dessas obras dramatizam a realidade para atrair a atenção do público. “Pode gerar uma certa confusão, porque o público em geral pode tomar como verdade algo que, em uma perspectiva ou outra, está sendo dramatizado”, pondera.

André Komatsu – Foto: NEV-USP

Komatsu enxerga que isso tem a ver com a espetacularização da vida alheia, um aspecto que naturalmente instiga a curiosidade humana. Nesse cenário, histórias sobre crimes únicos são as mais interessantes: “Ninguém quer ouvir sobre a vida de um desconhecido, a menos que essas informações sejam extremamente singulares, que é o que esse gênero tenta explorar de alguma forma”. Ele complementa: “As pessoas gostam de ouvir que é alguma coisa da personalidade que ela [pessoa autora do crime] tem, uma personalidade muito única, para ter levado ela a fazer isso [o crime]. 

Nesse cenário, o criminoso, com suas singularidades, pode passar de alguém a quem se condena para uma pessoa que o público possa entender, sentir empatia e até se identificar, mesmo que a obra por si só não tente atribuir um protagonismo positivo a ele. Isso se dá de forma indireta por questões da vida singular do indivíduo. 

Em alguns casos, a abordagem de uma produção pode aumentar esse aspecto para uma admiração pelo autor do crime, a ponto de criar até grupos de “fãs”, como no caso do serial killer Ted Bundy.“Ele faz coisas cruéis contra mulheres, mas, ao mesmo tempo, consegue ser muito gentil, muito charmoso”, pensa Komatsu.  

Ele ainda explica como o sentimento cresce a ponto de uma pessoa presa receber até cartas com propostas de casamento: “Uma parte bastante explorada nesses enredos é de alguém que ele [Ted Bundy] não consegue matar e se afeiçoa, essa seria ‘a pessoa escolhida’. Pode demonstrar que ele é capaz de sentir apego por alguém. Instiga essa fantasia de ser pessoas únicas que vão salvar uma pessoa com problemas”.  

Marcelo Nery – Foto: NEV-USP

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Segundo Nery, é possível até que características de criminosos sejam associadas a um tipo de estereótipo a longo prazo, o qual permanece na mentalidade da população: “Se eu apresento o criminoso sendo sedutor, um homem branco, de classe alta e educado, as pessoas podem associar tipos de atitude, de criminalidade, de violência contra a mulher, ligado a uma pessoa com essa característica”. “Da mesma maneira, se eu apresento em filmes pessoas do tráfico sendo negras, as pessoas vão fazer essa associação”, completa. 

Em algumas situações, é possível que um crime de grande repercussão na mídia desencadeie outros crimes semelhantes, conforme explica Komatsu. Um exemplo é o caso do massacre de Columbine, em que houve um tiroteio em massa em uma escola dos Estados Unidos: “Quando você vê um caso em que a narrativa conta que um menino participou de um tiroteio em massa porque ele sofria bullying, uma pessoa que sofre bullying pode começar a cogitar também que essa possa ser uma forma de punir seus agressores, quando ela não tem nenhuma outra resposta da direção da escola, dos pais ou da comunidade”. Isso é uma complexidade da Psicologia da Aprendizagem. 

É preciso ser delicado

Diante disso tudo, como abordar o true crime de modo a preservar e respeitar as vítimas e evitar que consequências prejudiciais ao público aconteçam? Os dois profissionais concordam que as produções devem ser cuidadosas na hora de narrar os fatos, pois elas podem impactar negativamente as famílias das vítimas. 

 “Algumas pessoas envolvidas sofrem com o caso até hoje. Dependendo do que você fala e como você fala, como você articula o argumento e apresenta as pessoas nessa obra, você pode gerar uma visão errada sobre a índole da pessoa. Não é uma questão de censura, mas o controle do ponto de vista de respeitar os indivíduos envolvidos naquela ocorrência é fundamental”, pontua Nery. Para Komatsu, o primeiro aspecto que os produtores devem levar em conta é a versão das histórias das vítimas e de seus familiares. Antes de entrevistá-los, é necessário questionar se elas se sentem à vontade para reviver os fatos: “As pessoas envolvidas têm um risco de serem ‘retraumatizadas’ pela forma como a história é contada ou pela repercussão. Tem gente querendo te entrevistar para falar de um assunto que às vezes você não quer, é bastante incômodo e, muitas vezes, as pessoas se isolam, têm depressão e alta ansiedade”.

Mas tanto o psicólogo quanto o sociólogo enxergam que essas produções podem ser benéficas para o público e a sociedade, se os produtores souberem explorar bem o tema e serem cautelosos com assuntos tão delicados. O primeiro opina que as produções true crime têm que ultrapassar o caráter de entreter o público, trazendo também reflexões e discussões: “Esse tema da moça da casa abandonada tem um amplo espaço para explorar questões de pessoas que vivem em situação de escravidão, que é muito frequente e tem números altíssimos no Brasil”. 

Nery finaliza com o argumento de que as pessoas podem se interessar em estudar sobre o que é crime, violência e violação de direito a partir dessas obras, algo que ele considera um grande ganho social: “Pensar no impacto social, no contexto político, econômico. Essas obras não são o fim, mas o começo de uma trajetória que pode levar as pessoas a maior compreensão sobre quais são os fatores que contribuem para a redução ou aumento desses eventos”. 


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