Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara

Por Alecsandra Matias de Oliveira, doutora em Artes Visuais pela ECA/USP e membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)

 09/04/2020 - Publicado há 5 anos
Alecsandra M. de Oliveira – Foto: Arquivo pessoal
A epígrafe de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, parece se adequar, à justa medida, à produção artística de Julio Leite (Campina Grande, Paraíba, 1969). Artista visual que emprega diversas linguagens – da fotografia, passando pela instalação, às ações performáticas –, Leite, aparentemente, ilude os sentidos do espectador de suas obras. Oferece signos que são notórios e diletos, mas esvazia símbolos e, principalmente, desconstrói significados. No campo imagético, ele refaz um percurso de pertencimento e, ao mesmo tempo, provoca estranhamento e deslocamento. O artista abre novas relações sobre o que está sendo visto – o que se vê não está na primeira aparência. Suas obras, invariavelmente, apresentam diversas camadas de leituras.

As instalações Projeto para um mundo novo (2016), Projeto para um Japão (2013), Projeto para uma Polônia (2013), entre outras do mesmo período, expressam esse procedimento formal e conceitual de sua obra. Nessa série, surgem bandeiras nacionais, como a do Japão, da Grécia ou de Cuba, com cores que destoam das originais. Essas peças também são precárias, bem como os materiais e o modo como são instaladas. Esse aspecto guarda como referências os suportes e os métodos empregados na arte povera. Na instalação Protótipo para um lugar seguro (2017), o artista alinha a bandeira em azul e amarelo do Japão com o auxílio de uma câmera de ar. Algo que deveria ser cercado de solenidade, uma vez que é o símbolo bélico da identidade de uma nação, ganha ar prosaico ou até maltrapilho – como se realmente fosse o “projeto” de uma nova territorialidade utópica. Aqui o emprego da cor evoca sentimento duplo: desconforto e reflexão.

Sob uma perspectiva histórica, a série de Julio Leite ganha ainda mais densidade – os anos de 1990 marcam o início das primeiras experiências estéticas do artista, mas também a queda do Muro de Berlim, a dissolução da URSS, as guerras étnicas, a globalização e a popularização da internet, todos acontecimentos que reconfiguraram o mapa múndi. As fronteiras tornaram-se movediças (caíram por terra as espaciais e as temporais), os nacionalismos foram postos em debate, identidades foram resgatas num processo intenso de ação e reação. Nessa ordem mundial, as bandeiras, assim como os mapas cartográficos e os símbolos tidos como nacionais mostram o que de fato eram: instrumentos de poder – uma força, colocada como “natural”, mas que não suporta questionamentos.

Trinta anos mais tarde, as bandeiras de Mundo Mix (2018), alteradas pelas cores e subsidiadas pelas orientações da land-art, questionam esse símbolo de hegemonia. A série de Julio Leite alerta para as mudanças e incertezas da geopolítica atual – algo que até meados de 1980 parecia inexorável. Os registros fotográficos das performances trazem o artista fincando bandeiras na paisagem – nelas, a leitura da bandeira como conquista do território (e/ou paisagem) fica evidente. Não há como fugir da ideia de posse, de colonização e de domínio do natural pelo homem. A cartografia, assumida como natural, não é mais que o exercício do poder daqueles que se dizem “donos da terra”. Os mapas podem “desenhar” o lugar, mas não o “produzem” efetivamente. Retornando às performances de Leite: qual foi a nação conquistadora? As cores distorcidas não dão margem à certeza. Tem-se, então, espaço aberto para o que Merleau-Ponty denomina como percepção espaço-temporal.

No duelo entre o local e o global, Julio Leite mostra que os velhos símbolos têm significados para além do conceito; eles dizem que há algo estranho; que eles não podem ser considerados naturais. O jogo imagético de Julio Leite fundamenta sua produção. Eles são formas simbólicas empregadas para a mediação entre o homem e a paisagem e refletem, sobretudo, as mudanças na configuração espacial que, por sua vez, estão ligadas ao equilíbrio das forças socioeconômicas globais que, consequentemente, criam uma nova geografia do poder – o mundo das aparências se dissolve. A apreensão visual que o artista proporciona tece o mundo com códigos próprios. Ele nos ensina a ver, repare!

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