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1989 e as profundas rupturas socioeconômicas dos anos 1980 não são apenas momentos da queda – seja a implosão da sociedade industrial, o fim da modernidade, o fim da história e das ideologias ou o colapso dos conflitos sociais empoeirados da Guerra Fria com a derrubada do Muro de Berlim. Os eventos também trouxeram promessas associadas ao que o sociólogo Ralf Dahrendorf chamou de “sociedades abertas”, contando com formatos de democracias liberais (sistema de freios e contrapesos, falibilismo, representação, garantias constitucionais, direitos civis e políticos, pluralidade das formas de vida, etc.) e, devemos acrescentar, a correlata expansão das estruturas do mercado neoliberal com novas culturas de consumo.
Um momento globalista, então, parecia materializar os sonhos de uma comunidade cultural renovada. A historiadora Or Rosenboim demonstrou a complexa genealogia do globalismo, enfatizando seu desenho a partir da tênue fronteira entre aspectos pluralistas e universalistas, ou seja, entre a vigência de critérios normativos de reconhecimento da diversidade cultural e o risco de imposição de formas unilaterais de padrões políticos e socioeconômicos. Não obstante essa contradição imanente, houve esforços para que as decisões nacionais não pudessem ser separadas de suas implicações globais à luz da crescente interdependência entre os países. Essa conexão tensa marca o conteúdo básico do globalismo e, por isso, uma rede transnacional de associações, ONGs, fóruns mundiais e acordos foi desenvolvida, sob o pano de fundo das transformações nos meios de comunicação e de transporte, substituindo a lógica binária da Guerra Fria pelos novos horizontes inclusivos das “sociedades abertas”.
Os anos 1990 vincularam essas promissões ao credo de estabilidade a longo prazo das democracias liberais. Com reparos pontuais e incursões militares assépticas das potências ocidentais pelo planeta (sob a nova racionalidade das “intervenções humanitárias”), a democracia tendia a amansar os ímpetos políticos. Contudo, domar as paixões políticas não foi um processo linear. Conforme argumentamos em nosso capítulo intitulado “Esfera pública e sistema-mundo”, publicado no livro Critical Theory and Authoritarian Populism, a garantia da estabilidade democrática exigia o equacionamento das promessas de participação e representação política, bem como a capacidade de gerir a aceleração da modernização neoliberal (tecnologia, comunicação, consumo, costumes, etc.) e as oscilações do mercado financeiro. Esses dois movimentos (democracia liberal e neoliberalismo), ainda que carreguem conteúdos distintos, estão profundamente entrelaçados na experiência histórica aberta nas três décadas seguintes, construindo o mundo da vida de uma geração que nasceu e amadureceu em meio àquelas promessas ungidas sobre a carcaça das autocracias na periferia do capitalismo.
Se o governo chinês foi confrontado pelos protestos de massa de 1989, o desmantelamento dos coletivismos burocráticos no Leste europeu (o chamado “socialismo real”) em Praga, Budapeste, Berlim e Leipzig (onde uma onda de violência esteve perto de ocorrer) foi protagonizado pelas multidões e bandeiras nacionais que sagraram o ritual coletivo da queda. Esses eventos conferem à data boa parte do significado histórico presente no imaginário político, como uma espécie de emanação autêntica e em boa medida pacífica da sociedade civil (ainda que em Timișoara, Bucareste e Sibiu as mobilizações tenham implicado uma espiral de violência nas ruas). Além disso, junto à tradicional narrativa do protagonismo civil, certamente devemos observar a completa ineficiência do antigo establishment político, que Stephen Kotkin chama de “sociedade incivil”, realçando que a incapacidade econômica e política dos governos também desempenhou um papel importante no colapso daqueles regimes.
Em uma perspectiva mais ampla, a construção democrática também articulou na Coreia do Sul as campanhas de junho de 1987, que forçaram lideranças militares a concessões referentes a eleições presidenciais diretas, pavimentando o caminho da transição democrática. Na América Latina, com a dissolução das ditaduras militares, o período marcou os impasses da transição democrática em países como Bolívia, Argentina, Brasil, Chile e Paraguai. O quadro normativo pluralista e as expectativas ligadas ao horizonte da cidadania e à tolerância civil, então, formaram referências importantes na gramática moral das novas democracias políticas e seus horizontes inclusivos.
Esse cenário reforçou uma narrativa pedestre e estereotipada na ideologia do capitalismo contemporâneo. As iluminações da razão burguesa e do juste milieu liberal encarnado na nova cidadania passaram a contrastar com uma mistura de estagnação, atraso, ineficiência, pouca competitividade e despotismo do passado. No horizonte, ganhava forma uma espécie de limbo socioeconômico que deveria ser cruzado pelos países periféricos rumo à completa integração e redenção das “sociedades abertas” dos países centrais. Contudo, para além desse imaginário, contradições históricas matizaram e colocaram em movimento um drama dialético encenado sobre as ruínas. No poema Totul (“Tudo”) de 1984, a escritora romena Ana Blandiana expõe o leitor a um inventário de itens da sociedade de massas, em uma estranha simbiose entre o espetáculo (como objetos da Adidas e imagens na televisão) e a degradação (comidas estragadas, enlatados baratos, óleos de qualidade duvidosa, corrupção, mercado negro, etc.). Não se trata apenas da estilização, em registro irônico e crítico, do cotidiano no fim da Era Ceauşescu. Trata-se, também, de um enfoque sobre as contradições subjacentes às novas aspirações de consumo e de democratização durante a transição.
O teórico cultural croata Ozren Pupovac chama a transição de uma caricatura temporal, ou seja, um estado de suspensão que represa o presente em uma espécie de “começo sem fim”, entre a fuga dos velhos coletivismos burocráticos e as promessas de uma nunca terminada inclusão junto aos centros capitalistas
Nesse sentido, o teórico cultural croata Ozren Pupovac chama a transição de uma caricatura temporal, ou seja, um estado de suspensão que represa o presente em uma espécie de “começo sem fim”, entre a fuga dos velhos coletivismos burocráticos e as promessas de uma nunca terminada inclusão junto aos centros capitalistas. É como se a “condição pós-socialista” oscilasse entre um “não mais” (deixando o passado socialista) e um “não ainda” (ou seja, países ainda não plenamente integrados à democracia liberal e, no caso do antigo Leste, à imaginada Europa), carregando uma marca evidente do passado. As narrativas de Svetlana Aleksievitch vão ainda além, tematizando justamente as inseguranças diante da precariedade instalada nas antigas repúblicas soviéticas com o caos econômico de 1992 e a grave crise financeira e social russa de 1998. Então, em vez do “socialismo real”, o “neoliberalismo real”.
Na América Latina, privatizações e duros ajustes fiscais diante do déficit fiscal e do combate à inflação crônica marcaram quadros sociais especialmente graves no Brasil, Peru (“Fujishock”) e Argentina (na esteira da recessão e da hiperinflação entre 1988 e 1989 e das reformas neoliberais de Menem). Se o Plano Real brasileiro e as “reformas gerenciais” chegaram a pavimentar algum caminho na arquitetura socioeconômica depois dos desastres nas sucessivas crises do fim dos anos 1970 e 1980, a região não ficou imune a uma espécie de “déficit democrático” das transições. Em suas pesquisas dos anos 1990, o cientista político Guillermo O’Donnell caracterizava as novas democracias como regimes que atendiam a critérios normativos da democracia, como competição política, liberdades civis, participação, imprensa livre e contestação pública (basicamente, critérios da célebre poliarquia de Robert Dahl), mas evidenciavam processos precários de consolidação institucional na medida em que a verticalização produzida pelo poder majoritário e sobretudo a pouca transparência dos procedimentos de representação do sistema político podem se sobrepor à horizontalidade da rede de instituições relativamente autônomas dos poderes, minando a rotinização de procedimentos das “sociedades abertas” e tornando-as suscetíveis a uma combinação explosiva de crises institucionais e dificuldades socioeconômicas.
A sorte e os infortúnios da democratização política, mais do que um quadro confinado às periferias do capitalismo, ficam como legado das agendas dos anos 1980. Por isso, os espectros que rondam as “sociedades abertas” são inseparáveis do atual esfumaçamento das miragens de estabilidade democrática tão propagadas no período. A globalização neoliberal tem sido chacoalhada desde 2008 pela crescente precarização da vida contemporânea. Com ela, se a crise de representação e de confiança em relação ao establishment dos sistemas democráticos tem encontrado expressão difusa nas ruas de 2009-2013 e nos tumultos de 2018 (no Brasil e na França), surge um cenário alimentado por cantilenas anti-establishment apoiadas em ímpetos autoritários instalados no sistema pela sanção das urnas e/ou pela urdidura de decretos. Olhar para os processos sociais e a ciranda de promessas disparadas após 1989 à luz dos “deslizes autoritários”[1] construídos pela atual tensão gestada no interior das próprias democracias liberais é a oportunidade para discutir as realizações, os fiascos e, sobretudo, a irrealidade dos discursos triunfalistas que circunscreveram um período cujos significados parecem, agora, embaralhar as aspirações liberais diante de pesadelos iliberais.
[1] https://www.uwestminsterpress.co.uk/site/chapters/10.16997/book30.h/