Neoliberalismo, a base para a emergência do neofascismo

Por Dennis de Oliveira, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 09/09/2022 - Publicado há 2 anos

As palavras liberdade e democracia nunca foram tão banalizadas como nos últimos tempos. O maior problema é que elas não demarcam campo entre quem é a favor ou contra democracia e liberdade para todos. Elas foram banalizadas porque estão na boca de fascistas e democratas, fazendo com que os seus sentidos fluam de tal maneira que deixam de ter força. Parece que o sentido que irá valer será aquele que for pronunciado mais vezes e com mais repercussão.

No dia 5 de setembro, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Edson Facchin, concedeu três liminares que suspendem trechos de decretos do presidente da República que flexibilizaram as autorizações para compra de armas de fogo e munições. A alegação do ministro foi que o acirramento na atual campanha eleitoral torna urgente a tomada desta decisão.

Evidente que tal decisão desagradou o campo político da extrema direita, defensora da “liberdade” do cidadão de possuir armas de fogo. O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, afirmou em seu Twitter que “… o judiciário extrapola suas atribuições, fazendo ingerência indevida. As liminares de hoje interferem em decisões já aprovadas pelos outros poderes, nos direitos de autodefesa e dos CACs. Liberdade não se negocia e absurdos como esses não podem continuar” (grifos meus).

No mesmo diapasão, outros defensores da liberação do uso de armas, como o deputado Capitão Augusto, líder da chamada Bancada da Bala, fala de uma interferência indevida do Judiciário em decisão do Poder Executivo. Esse raciocínio está presente em várias manifestações convocadas por grupos de extrema direita afirmando que o Judiciário impede o presidente de governar. E da necessidade de ter mais ministros no Supremo que estejam alinhados com as ideias do chefe do Executivo. Às favas a separação dos poderes de Montesquieu.

Neoliberalismo e fascismo

Na obra A nova razão do mundo, Christian Laval e Pierre Dardot apresentam a instigante ideia de que o neoliberalismo não é apenas um paradigma econômico, mas uma nova razão governamental, conceito desenvolvido por Foucault que se define pelo encontro de um modelo de sociabilidade com uma racionalidade governamental. O modelo de sociabilidade neoliberal pode ser sintetizado na introjeção da lógica empresarial nos sujeitos – estes agem como indivíduos autarquizados e que competem entre si em todos os níveis de relacionamento social – político, econômico, cultural, entre outros. A racionalidade governamental que vai ao encontro deste modelo de sociabilidade é justamente garantir a “liberação” destas atitudes (que viram sinônimo de liberdade), inclusive permitindo que todos os recursos, seja usar armas de fogo ou disseminar fake news, possam ser utilizados. Qualquer regulação que implique limitar comportamentos individuais é classificada como autoritária e contra “as liberdades”.

Isto não é produto de uma “degradação moral”, mas do próprio percurso do capitalismo. O neoliberalismo é uma racionalidade governamental que possibilita o pleno desenvolvimento do padrão de acumulação e reprodução do capital nesta atual fase chamada de “acumulação flexível”. A organização da produção capitalista em centros gerenciadores de nichos produtivos espalhados em todo o planeta impõe uma convergência normativa de relações de trabalho e de fluxos do capital a partir das demandas dos comandos desses centros. Por sua vez, todo o processo de realização global desta acumulação ocorre pelas redes telemáticas controladas também por centros corporativos, que impõem uma lógica estético-política na qual a competição de imagens individuais é o centro.

O interessante nestas reflexões é que esses deslizamentos conceituais do que é liberdade e democracia conversando diretamente com o fascismo não são algo à toa, mas sim consequência de um modelo de sociabilidade imposto pelo padrão de acumulação de riquezas. Pode-se falar da emergência de uma cultura neofascista que transcende a própria disputa eleitoral e se entranha nas relações cotidianas – em agosto, um empresário agrediu mulheres em uma academia no Shopping Iguatemi e saiu do Brasil em 4 de setembro para destino ignorado, antes de sofrer qualquer ação das autoridades; em setembro, uma síndica de um condomínio na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, foi agredida fisicamente por um morador porque a academia estava interditada para obras de manutenção; e em julho, na festa de seu aniversário em Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda foi assassinado por um policial por divergências partidárias.

O sentido de “liberdade” no extremo é a “lei da selva”. É usar de todos os recursos para fazer prevalecer os seus interesses. A cultura neofascista que vai se consolidando é a exacerbação do clima de competição do neoliberalismo. Por isto, enfrentar o fascismo é, antes de tudo, acabar com a sua base econômica, o neoliberalismo.


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