“Mais Médicos”: opinião de um médico e cidadão que vive na Amazônia

Luís Marcelo A. Camargo é professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP e coordena o ICB5 em Rondônia

 13/11/2017 - Publicado há 6 anos     Atualizado: 14/11/2017 as 13:48
Luís Marcelo Aranha Camargo – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

 AAmazônia ocupa quase metade do território nacional e detém ao redor de 11% de nossa população. É um caldeirão genético fantástico: brancos do Sul e Sudeste, miscigenando-se com índios, nordestinos (ciclos da borracha) e negros caribenhos (construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré).

Existem duas únicas e precárias grandes estradas com quase 2.000 quilômetros que ligam Rio Branco (Acre) a Cuiabá (MT) e outra que liga Belém (PA) a Brasília (DF). Trata-se do cordão umbilical que liga a vastidão amazônica com o resto do País. As verdadeiras estradas são os imensos e rebeldes rios, muitos não navegáveis na época da seca. É natural, portanto, que o profissional médico se concentre nas capitais e ao longo dos eixos destas estradas.

Os pequenos municípios, assim como as áreas indígenas, até há pouco tempo, careciam de profissionais médicos, além de dentistas e demais profissionais da saúde. A região Norte detinha até quase três vezes menos médicos que o Sudeste e o Sul. Rondônia, por sua vez, apresentava ao redor de um médico para cada 1.000 habitantes e o Brasil, como um todo, ao redor de cinco profissionais pelo mesmo coeficiente.  (dados de 2014 – Scherer et al.,2015-https://www.usp.br/agen/wp-content/uploads/DemografiaMedica30nov2015.pdf acessado em 11/10/2017. Demografia Médica no Brasil). Há muito esperava-se uma estratégia que tornasse esse universo mais homogêneo.

Em 2014 o Ministério de Saúde do Brasil implantou o Programa Mais Médicos do Brasil (PMMB – LEI Nº 12.871, DE 22 DE OUTUBRO DE 2013.). Tive a oportunidade de participar de uma reunião durante o Congresso Brasileiro de Ensino Médico (Cobem) em novembro de 2013. A reunião ocorreu durante o fórum de diretores e coordenadores de cursos de medicina que objetivava criar uma força-tarefa para elaborar, a toque de caixa, o processo de seleção dos médicos, inicialmente, todos oriundos de Cuba.

A Amazônia ocupa quase metade do território nacional e detém ao redor de 11% de nossa população. É um caldeirão genético fantástico: brancos do Sul e Sudeste, miscigenando-se com índios, nordestinos (ciclos da borracha) e negros caribenhos (construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré).

Eram seis participantes da força-tarefa: um professor da Faculdade de Medicina de Marília, três da Faculdade de Medicina da Fundação ABC e um professor da Universidade Federal de Rondônia, além de mim (professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, em Monte Negro, Rondônia, o ICB5). Segundo o coordenador, a presidente Dilma Rousseff queria este processo “pronto para ontem”. Debruçamo-nos por três a quatro horas sobre uma mesa e conversamos bastante sobre o método de seleção dos profissionais, sem questionar o PMMB em si.

Após esta reunião, vários contatos por e-mail foram mantidos e eis que, em dezembro de 2013 os primeiros médicos começaram a chegar aos distantes municípios rondonienses. Chegaram debaixo da pesada chuva tropical e sem que os municípios esperassem. Não havia previsão de moradia, alimentação e acolhimento dos profissionais, pois, pasmem, as prefeituras e suas câmaras de vereadores estavam em recesso de fim de ano… Vários profissionais foram para pensões, hotéis e casas de cidadãos, até o país acordar para o ano seguinte. Muitos me relataram uma sensação de abandono e insegurança e pensaram em retornar ao país natal.

Com o início do ano de 2014, os demais médicos começaram a chegar. Para os pequenos municípios são, em média, cinco profissionais. A esta altura as prefeituras já haviam regularizado a questão do acolhimento dos profissionais. Uma segunda etapa difícil viria a seguir: a discriminação dos médicos cubanos pelos médicos locais e a atitude irresponsável de alguns prefeitos que colocaram os médicos para assumir plantões nos hospitais municipais, atitude proibida, pois por regulamentação, os profissionais não possuem registro no Conselho Regional de Medicina e sim um registro provisório no Ministério da Saúde.

A esta altura do campeonato, fomos convidados a supervisionar os médicos. Tivemos que intermediar o conflito. Afinal de contas o ICB5/USP está há 20 anos no local e é muito respeitado na região. Interviemos em prol dos médicos recém-chegados. Questão ética e humanitária.  Com o tempo, ficamos responsável pelo PMMB de Monte Negro, Alto Paraíso e Cacaulândia. São municípios pequenos com menos de 15.000 habitantes com 12 médicos no total.

Trilhamos este caminho há quase cinco anos. Faço reflexões como médico assistente e cidadão sobre o programa. Inicialmente, pelo caráter eleitoreiro que pessoalmente enxerguei na empreitada, não me empolguei muito e quase desisti. No entanto, refleti: melhor adotar esta “criança” ao invés de perdê-la de vez… De lá para cá tem sido uma queda de braço.

Na sua maioria os facultativos são bem treinados e cumprem as regras estabelecidas na área de atenção básica à saúde. Médicos brasileiros entraram no programa há dois ou três anos, porém recebem três vezes mais que os médicos cubanos. Apesar da injusta falta de isonomia salarial, não há mais animosidade entre os profissionais nacionais e estrangeiros (ao menos em nossa área de abrangência).

Uma segunda etapa difícil viria a seguir: a discriminação dos médicos cubanos pelos médicos locais e a atitude irresponsável de alguns prefeitos que colocaram os médicos para assumir plantões nos hospitais municipais, atitude proibida, pois por regulamentação, os profissionais não possuem registro no Conselho Regional de Medicina e sim um registro provisório no Ministério da Saúde.

Hoje são por volta de 319 médicos no PMMB em Rondônia (http://www.brasil.gov.br/saude/2015/05/mais-medicos-atende-100-das-vagas-em-rondonia). Os profissionais estão estabelecidos, têm moradia, acesso à Internet e recebem regularmente um pró-labore das prefeituras que varia de R$ 1.500,00 a R$ 3.000,00. Fazem cursos de capacitação pela Internet, recebendo certificados para tal. Devem cumprir uma carga mensal de 30 horas de capacitação. Hoje existem médicos nos locais mais improváveis, onde, particularmente, nunca achei que um médico se estabeleceria, inclusive áreas indígenas. Ponto positivo do programa. Talvez sua maior conquista.

A proposição inicial do PMMB era de articular os profissionais com equipes de saúde da Estratégia Saúde da Família: ou seja, incorporar o profissional a uma equipe minimamente composta de um dentista, um enfermeiro, técnicos em enfermagem e os agentes comunitários de Saúde (ACS). Porém, dos três municípios, apenas um tem dentista incorporado à equipe e poucos têm o profissional de enfermagem. A cobertura territorial destas equipes, que deveriam atuar na área urbana e rural, varia, mas não é superior a 50%.

Faltam equipamentos básicos aos ACS (aparelhos para mensurar a pressão arterial, balança, fita métrica e aparelhos para medir a glicose sanguínea). Não há padronização de condutas, em que pese a existência das Diretrizes do Ministério da Saúde. Em Cuba, de onde ainda é natural a maioria dos profissionais, não existem hanseníase, acidente por picada de cobra (não há cobra peçonhenta no país), leishmaniose, micoses profundas etc.

Tiveram uma capacitação superficial em Brasília por três meses, mas todos, sem exceção, demonstraram interesse em reciclarem-se em tais agravos à saúde. Novamente o ICB5/USP aparece, em plena Copa do Mundo de 2014 e oferece a primeira capacitação de médicos do PMMB em Monte Negro para preencher esta lacuna. De lá para cá, foram inúmeras capacitações.

Em minha modesta opinião, esta ineficácia do programa tem sua gênese no viciado cenário político de nosso país. Refletidos nos municípios os absurdos e desmandos do Planalto Central. Os secretários municipais e gestores locais do programa são apenas curiosos, sem formação e/ou experiência na área de saúde, e ocupam o cargo por indicação política. Frutos de lobby político local.

Um dos municípios que assistimos, por exemplo, já teve em menos de um ano quatro secretários municipais de saúde e três gestores do programa! Como se dá continuidade e consistência a um programa com uma infraestrutura tão frágil, tão instável? Entendo, como médico-cidadão, que as mudanças desejadas estão acima de nossos limites de intervenção imediata. Trata-se de um problema sistêmico.

Uma cultura criada ao longo dos anos onde os atores principais locupletam-se do sistema público. Sequelas de governos autoritários e desastrosos. Ficamos tristes, desanimados e insatisfeitos. Mas manteremos a postura construtiva.

Já há para 6, 7 e 8 de novembro deste ano nova capacitação dos profissionais das prefeituras na abordagem de pacientes com hipertensão arterial sistêmica. Uma pálida tentativa de melhorar a situação. Vemos com ansiedade o desfecho do programa. Atualmente temos Mais Médicos, mas saúde não se faz apenas com a presença deste profissional…

 

 

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