Letramento racial e cultura inclusiva na pós-graduação: ações antirracistas no campo do concreto e do simbólico

Por Natalia Vieira, bióloga e cofundadora do Coletivo Negro Bitita, e Mariana Inglez, doutoranda do Instituto de Biociências da USP

 26/09/2022 - Publicado há 2 anos
Natalia Vieira – Foto: Arquivo pessoal
Mariana Inglez – Foto: Arquivo pessoal

 

O projeto Narrativas e Experiências Negras na Ecologia: Letramento racial e cultura inclusiva na pós-graduação é, em essência, sobre a celebração da negritude em todos os espaços. O sonho do projeto nasceu da vontade de fazer ecoar as potências que são as pessoas negras em suas múltiplas facetas, evidenciando também as trajetórias que as trouxeram ao momento presente, ao hoje.

Como biólogas, é natural e intuitivo que olhemos o mundo pelas lentes das transformações ao longo do tempo e do desenvolvimento de novas gerações. Como mulheres negras, nossas referências ao passado e projeção de pessoas negras no futuro é sabedoria ancestral. O desejo de contar nossas histórias é recuperar e recriar narrativas também em áreas das Ciências da Natureza, como ciências biológicas e geociências.

Embora as pessoas mais impactadas pelas emergências climáticas atuais sejam justamente aquelas em vulnerabilidade socioeconômica, o que no Brasil implica em considerar uma maioria negra, além dos povos tradicionais como populações indígenas, ocorre o viés racial oposto nos debates acadêmicos das áreas ambientais, com uma predominância branca estudando e tendo voz e protagonismo. Ampliar a diversidade também nessas áreas de conhecimento é urgente inclusive para aumentar as possibilidades de diálogo com boa parte da população brasileira que ainda não se identifica com os debates sobre meio ambiente, por exemplo.

A partir dessas percepções, o projeto foi sendo desenhado com palavras soltas, emoções e ideias dançando no ar, descansando aos pouquinhos e afetivamente, nos três eixos que orientam esta iniciativa: ancestralidade, identidade e legado. Quem nos trouxe até aqui, quem somos e o que estamos construindo para o futuro.

O símbolo desse nosso sonho é Sankofa, um adinkra (conjunto de símbolos ideográficos dos povos Acã, grupo linguístico da África Ocidental), que representa uma ave com a cabeça voltada para trás que carrega em seu bico, um ovo. Olhar para trás é reconhecer nossos ancestrais, e celebrar o novo é dar boas-vindas a quem está chegando para somar na caminhada. Cada entrevista, cada palavra trocada, olhares cruzados e trajetórias compartilhadas guardam em si o reconhecimento que tivemos a honra de dividir com a professora Adriana Alves (Instituto de Geociências da USP), Lucas Nascimento (conhecido como Taio Science e doutorando no IB-USP) e Jady Millan (graduanda no IB-USP). Agradecemos imensamente a generosidade, carinho, disponibilidade e confiança no nosso trabalho.

Agradecemos especialmente à professora Renata Pardini e ao professor Paulo Inácio Prado, verdadeiros aliados comprometidos com a luta antirracista e com a construção de uma realidade mais inclusiva. Ambos, respectivamente professora e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ecologia (IB-USP), desde o início apoiaram as políticas afirmativas para inclusão de pessoas negras, indígenas e de outras populações tradicionais, PCDs e trans, recentemente implementadas no mesmo programa, e compreenderam que é preciso contribuir para a construção de um ambiente mais afetivo e inclusivo para a diversidade. Como nos lembra a professora Adriana Alves em sua entrevista, não basta possibilitar o aumento da diversidade, é preciso recriar os espaços pensados pela e para a elite branca, e transformá-los em um ambiente preparado para receber a todas e todos.

O projeto Narrativas e Experiências Negras na Ecologia também é entendido como uma continuidade dessa conquista exemplar por inclusão, do PPG em Ecologia, visando a garantir a permanência das pessoas que agora têm mais chances de fazer parte dessa comunidade.

No fundo, esse projeto é um chamado carinhoso à ação para uma causa que precisa ser de todos nós. Não basta dizer não ao racismo, é preciso dizer sim à equidade racial e agir efetivamente por essa causa – tanto no campo do concreto quanto no campo simbólico.

Garantir educação ainda não é garantir o poder de tomada de decisão em cargos hierárquicos mais altos no mercado de trabalho, seja no terceiro setor, no setor privado ou público. No caso das hierarquias acadêmicas, as ações por igualdade racial e combate ao racismo estrutural presentes em todas as instituições brasileiras, já que são fundadas em uma sociedade baseada na exploração colonialista escravocrata, não serão suficientes se restritas apenas às políticas afirmativas de ingresso na graduação. Não temos todo o tempo do mundo e não queremos ter que esperar mais 150 anos para ver avanços por igualdade que impactem significantemente nossas vidas e na vida dos nossos filhos.

Como ambiente de formação de tomadores de decisão em nossa sociedade, cabe à universidade garantir que mais pessoas negras, indígenas, trans, PDCs, possam ter mais chances de ocupar espaços de poder, por exemplo, sendo vozes ativas e consideradas nas diferentes etapas de formulação e implementação de políticas públicas (o que implica criar uma cultura inclusiva também na pós-graduação e entre o corpo docente).

Por fim, compartilhamos ainda que esse projeto foi sonhado e realizado por duas mulheres negras que ansiavam compartilhar as vivências e narrativas das suas e dos seus, tão poucas vezes ouvidas em ciências ambientais, tendo a oportunidade de celebrá-las em vida. Dessa forma, entendemos que disputamos a narrativa, recriamos o imaginário e entregamos uma representação positiva, bonita e real sobre três pessoas negras de diferentes gerações, que se conectam através do tempo, dos passos, dos sonhos e também da paixão pela ciência e pela vida.

A simbologia Sankofa nos ensina que sempre há tempo para resgatar o que ficou perdido, o que ficou para trás e ressignificar as nossas vivências. Assim como sempre é tempo de semear um futuro novo, fértil em possibilidades e horizontes. Esperamos que o projeto acolha outras pessoas – assim como fez conosco-, que chegue também como um abraço a quem precisa de novas referências para se espelhar e se reconhecer enquanto pessoa negra apaixonada pelas ciências ambientais. Podemos ocupar qualquer lugar.


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