Espaços inovadores como laboratórios da vida pública na era digital

Por Christiane Wagner, pesquisadora do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP

 30/06/2023 - Publicado há 10 meses
Christiane Wagner – Foto: Arquivo pessoal
Imaginar a vida pública é conceber espaços onde pessoas possam compartilhar diversas experiências entre trabalho e lazer, participando de diferentes atividades, contemplando estética e socialmente a configuração dos espaços urbanos como prática cotidiana. A cidade cresce e acompanha inovações da ciência, tecnologia e indústria, passando por transformações sociais em suas fases de desenvolvimento com sucessivas “revoluções”.

Atualmente esse desenvolvimento se encontra em sua quarta fase, a indústria 4.0, em direção ao conceito de cidade inteligente e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nesse sentido, o princípio da utopia como crítica, que determina possibilidades ou não, será abordado por meio dos modelos implementados com base em dois fatores determinantes. O primeiro são os modelos digitais propriamente denominados “espaços inovadores como laboratórios da vida pública na era digital” concebendo projetos para comunidades interativas. O segundo é a estrutura transformadora da cidade influenciada social e esteticamente pelos meios de comunicação, direcionando o ideal das metas estabelecidas pelos ODS na formação da opinião pública em contexto de desigualdade social.

Assim, pensar a cidade é, ao mesmo tempo, pensar a vida pública. Se, por um lado, essa concepção de vida pública diz respeito ao espaço de participação coletiva das pessoas, em oposição ao universo privado e ao meio familiar, por outro, trata-se daquilo que é público e de direito do povo mediante a atuação do Estado. São diversos os meios da esfera pública para entretenimento e participação da vida cotidiana. A circulação de pessoas pelas ruas, praças, centro comerciais, meios de transporte, entre muitas outras ações em movimento e constantes transformações culturais, define o espaço urbano esteticamente, pela percepção subjetiva daquilo que, em português, costuma ser denominado popularmente “clima” da vida urbana — em termos conceituais, “atmosfera urbana”, se adotarmos a terminologia de Gernot Böhme, em sua obra Atmosphäre: Essays zur neuen Ästhetik, que aqui traduzo livremente por Atmosfera: Ensaios sobre a nova estética, originalmente publicada em Frankfurt, no ano de 1995.

Para esse pensador alemão, a “atmosfera urbana” pode ser analisada por meio dos objetos e dos meios pelos quais é produzida. Böhme descreve a atmosfera urbana como um fenômeno comum e evidente para seus habitantes. Eles a produzem em suas vidas públicas, mas visitantes a notam como característica, pelas impressões e percepções que têm do ambiente, principalmente nos espaços urbanos. Por isso, para esse autor, a atmosfera de uma cidade não é a mesma coisa que sua “imagem”. O conceito de “estética da atmosfera”, segundo Gernot Böhme, libera a imagem de sua restrição ao visual e ao simbólico. O multiculturalismo das cidades apresenta imagens cada vez mais universais e, justamente em função de sua diversidade, não produz um simbolismo geral como critério.

Essa experiência estética se inter-relaciona com as ações sociais de pessoas residentes ou de outras regiões, por meio da apresentação de ideias, de discussões e, principalmente, pela formação de opiniões. Os meios de comunicação são mediações fundamentais na conquista e fortalecimento dessa atmosfera urbana, indo ao encontro de uma esfera pública marcada ou não por ideais democráticos. Essa esfera pública representa o espaço da polis desde a concepção aristotélica, com uma clara divisão entre o âmbito da família e o âmbito da política. O primeiro é marcado pela intimidade entre aqueles próximos, enquanto o segundo conta com regras e leis para assegurar o funcionamento da sociedade. No entanto, em uma análise delimitada à modernidade europeia sobre a esfera pública, Jürgen Habermas, em sua obra Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa, originalmente publicada em 1962 em alemão, desenvolve um processo de análises destacando as ações dos meios de comunicação nas transformações sociais, assim como a função política. Habermas analisa as autonomias, liberdades e direitos conquistados durante a modernidade ocidental mediante a exposição pública de ideais na formação de opiniões que passaram a circular por uma variedade de meios de comunicação.

Essa transformação tem um impacto profundo na dinâmica da vida pública, possibilitando a diversos grupos sociais o controle sobre as massas. Consequentemente, Habermas, em sua obra Teoria da ação comunicativa, originalmente publicada em 1981 no idioma alemão, desenvolve um raciocínio sobre a dinâmica comunicativa em que a vontade coletiva e a opinião são formadas, em processo de interação entre os atores sociais, em busca de consenso para as decisões em conjunto. Nessa concepção, podemos considerar que a vontade geral e a opinião pública estejam sendo criadas de forma discursiva e democrática. No entanto, atualmente o entendimento dessa distinção entre as esferas pública e privada tem sido tema de muitas discussões em consequência dos avanços das tecnologias de comunicação e informação na participação da vida pública em meio à coexistência entre realidades urbanas físicas e virtuais. Para isso, Habermas, em setembro de 2022, publicou um livro que, em tradução livre para o português, se intitularia Uma nova mudança estrutural da esfera pública e da política deliberativa (Ein neuer Strukturwandel der Öffentlichkeit und die deliberative Politik). A publicação avança a sua tese de 1962, abordando o impacto dos meios de comunicação na era digital sobre a democracia.

Decerto, esses processos avançados de comunicação por meios digitais apresentam desafios sociais diversos. Em uma esfera pública cujas deliberações se concentram na reconciliação de identidades e diferenças, evitando a construção da diferença pela violência como alteridade, o principal desafio consiste em usar a internet e idealizar soluções para redução das desigualdades sociais e urbanas que se estendam para a realidade cotidiana e física. Ao invés de ser um espaço sem fronteiras ou democrático, a esfera pública virtual tem se provado uma plataforma de estruturas sociais desiguais. Tecnologias e suas infraestruturas correspondentes fazem com que o espaço virtual se mantenha em funcionamento seguindo padrões da hierarquia social, privilegiando os centros e desfavorecendo as periferias em âmbito global e local. Isso se deve ao próprio modus operandi dos sistemas de gestão do poder público que suportam essa realidade: eles não estabelecem regras e controles para a implementação e manutenção da infraestrutura de tecnologias de informação e comunicação por parte dos sistemas privado e, em muitos casos, multinacional.

Prevalecem, assim, os interesses econômicos dessas corporações globais de tecnologias da informação e comunicação, como relataram, conjuntamente, a engenheira e doutoranda Tainá Bittencourt e a engenheira e professora da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo Mariana Giannotti, no artigo Acesso virtual a oportunidades: reflexões sobre a mobilidade urbana, no pandêmico ano de 2020, quando a realidade virtual tomou o espaço e a consciência da vida urbana pública. As autoras afirmam: “Um primeiro caminho está na consideração de que as telecomunicações são hoje uma dimensão importante da vida social e coletiva e devem ter intervenção pública para fomentar e garantir o seu acesso universal”.

Por conseguinte, fazem-se cada vez mais presentes projetos de políticas públicas para a resolução das desigualdades sociais com base no conceito de cidade inteligente. O termo remete à conectividade digital entre planejamento urbano, administração, fornecimento de energia, mobilidade e comunicação, visando melhor qualidade de vida. Essas novas dimensões dos espaços implicam necessidades cada vez maiores de planejamento. A quarta revolução industrial, também chamada de “indústria 4.0”, engloba um sistema de tecnologias avançadas e conectadas que incluem robótica, inteligência artificial (IA), conexões máquina a máquina, big data, Internet das Coisas, segurança cibernética, modelagem 3D e cloud computing. Todas essas tecnologias estão mudando os métodos de produção e os padrões da vida urbana. Nos projetos urbanos, os sistemas de simulação com computadores e técnicas vêm sendo usados para gerar modelos digitais que permitem interações e aplicações complexas em realidade virtual e aumentada, simulando, assim, os processos do mundo real. Além disso, toda a estrutura socioeconômica está sendo digitalizada em seus aspectos produtivos, educacionais e culturais.

Os laboratórios da vida pública na era digital integram essas novas iniciativas. Elas buscam criar espaços para que pessoas de todas as origens e contextos assumam um papel ativo na vida pública e possam colaborar para a construção de uma sociedade mais inclusiva e equitativa. Tais espaços trabalham com novas tecnologias e ferramentas digitais para promover interações virtuais entre os usuários, conectar pessoas com ideias semelhantes para trabalharem juntas e criarem um ambiente em que todos possam participar. Esses laboratórios também oferecem oportunidades para que as pessoas participem diretamente das tomadas de decisão sem a necessidade de estar fisicamente presentes no local em que tais decisões são tomadas. Esses espaços também trabalham para conectar autoridades, cidadãs e cidadãos, promovendo a habilidade de se usar as ferramentas digitais para melhorar a vida cotidiana de todas e todos. Alguns exemplos de laboratórios da vida pública na era digital lançados em São Paulo são: o Centro de Inovação e Tecnologia (CIT) da Prefeitura de São Paulo; o Laboratório de Inovação em Governo da Prefeitura de São Paulo; o Laboratório de Inovação Digital de São Paulo; o FAB LAB LIVRE SP, entre outros. Em Berlim, destacam-se Das Berlin-Institut für Bevölkerung und Entwicklung; Smart City Berlin e Gemeinsam Digital: Berlin.

Esses laboratórios contribuem para a construção de um ambiente de participação cívica ativa na economia digital e permitem a criação de parcerias, execução de projetos e monitoração da atuação governamental. Contudo, questiona-se o fundamento de uma cidade inteligente em sua estrutura de comunicação interativa, na capacidade das comunidades humanas de cooperar intelectual, ética e democraticamente em relação aos modelos considerados “laboratórios da vida pública”. Assim como o sentido que o conceito de “laboratório” remete, de um espaço para experiências. Em suma, esses “laboratórios” na era digital são meios de participação social criados originalmente para fomentar a experimentação e desenvolvimento de novas formas de solução aos problemas relacionados com a vida pública. Os laboratórios costumam apoiar pesquisas interdisciplinares e buscam reunir atores políticos e estudiosos para resolução de questões sociais. Esses laboratórios correspondem a iniciativas no setor público que objetivam combinar tecnologia, inovação aberta e dados. No entanto, é preciso analisar o percurso dessas “inovações” que visam tornar as políticas públicas mais eficazes, melhorar a qualidade de vida da população e promover a participação pública, se de fato são consolidadas com base nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), do contrário estariam apenas oferecendo uma visão de mundo (Weltanschauung) e utopias.

Essa racionalização do sistema em seu curso de desenvolvimento industrial, considerando as mudanças no espaço urbano, implica também a tecnicização e a esteticização das estruturas sociais e urbanas, ou seja, como a sociedade é reconfigurada técnica e esteticamente em face da indústria 4.0. Assim, a relação entre projetos de design e arquitetura, e a arte em espaços públicos, se mostra significativa nessa realidade social extremamente complexa, dado o avanço tecnológico, sociocultural e industrial na configuração dos espaços públicos urbanos. Tal como anteriormente apresentado com o auxílio da estética da atmosfera, com Böhme, as mudanças em questão não se limitam às transformações sociais. Elas contemplam também intervenções pela arte, arquitetura, design e se estendem ao meio ambiente, incluindo ambientes naturais, humanos e urbanos. Há um interesse crescente em apreciar a estética desses ambientes, com foco na experiência humana e na vida cotidiana.

Essa apreciação começou a surgir com os movimentos ambientais e ecológicos nos anos de 1960 e 1970 respectivamente, refletindo no cenário artístico internacional, destacando-se o ano de 1982, durante a exposição de arte internacional documenta 7, quando Joseph Beuys plantou sete mil árvores no espaço público de Kassel, na Alemanha. Mais recentemente, a 32ª Bienal de São Paulo apresentou obras de arte relacionadas a questões ambientais e existenciais. Além disso, o evento revelou à comunidade as condições contemporâneas da vida em busca de soluções, que fundamentaram a curadoria da exposição, cujo tema foi Incerteza viva. Para ilustrar melhor esse assunto, faço referência ao recente artigo de minha autoria intitulado Estética ambiental, artes e espaços públicos.

A vida pública digital, em sua complexidade, é hoje a parte essencial de muitas cidades, onde as pessoas convivem, construindo e reconstruindo suas histórias, bem como seus valores morais, éticos, econômicos, culturais, sociais e políticos. Muitas cidades representam esteticamente o espaço e o tempo dessa vida urbana em transformação, com a relação entre arte, ciência e tecnologia para desenvolvimento de centros urbanos mais inclusivos e lúdicos.

Uma recente pesquisa empírica, desenvolvida por Žana Vrhovac, Patrick Ruess e Claudius Schaufler para o instituto alemão Fraunhofer, sobre centros urbanos experimentais e espaços públicos do futuro, publicada em 2021 (Experimentelle Innenstädte und öffentliche Räume der Zukunft – em tradução livre, Centros urbanos experimentais e espaços públicos do futuro), fornece, como resultado provisório de um projeto interdisciplinar, uma visão específica sobre os processos de transformação dos espaços públicos urbanos nos próximos dez anos: um futuro experimental e lúdico para centros urbanos e espaços públicos. Nesse processo de transformação incluem-se as artes, apresentando novas formas de entender o ser humano e seu ambiente, com uma perspectiva reflexiva e lúdica, essencial para tornar o centro da cidade um lugar de melhor convívio, onde as pessoas possam compartilhar o prazer da vida cotidiana nos espaços públicos urbanos. Para isso, novos estudos estão sendo conduzidos, incluindo a pesquisa que desenvolvo para o Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP) em arte, arquitetura e design sobre cidade inteligente com foco em espaços públicos e sustentabilidade, comparando as cidades de São Paulo e Berlim. Nessas condições, esta pesquisa trata da transformação da cidade, entendida pela interdependência artística, cultural e política, compreendendo os desafios na busca de soluções mediante novos projetos de arquitetura e design, em face das novas formas de resiliência da vida urbana.

Em síntese, os espaços inovadores como laboratórios da vida pública na era digital são entendidos como modelos pautados não apenas em políticas governamentais e projetos sociais visando à digitalização e à sustentabilidade do meio urbano, mas também como projetos ainda em fase experimental para valorização e melhor funcionalidade dos centros urbanos. Mas isso significa apenas uma possibilidade visando aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e não se trata da realidade atual, representam apenas ideais para um mundo melhor. Para que de fato essas “inovações” sejam bem-sucedidas, ainda é preciso muito investimento e vontade política para a concretização de melhorias nos espaços públicos físicos em relação ao espaço idealizado política e virtualmente, além de melhores condições materiais para a vida urbana com a redução das desigualdades sociais, um problema mundial e quase crônico.

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