Das memórias às homenagens: afetivas e acadêmicas

Por Cremilda Medina, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP

 16/02/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 17/02/2022 as 14:07
Da esquerda para a direita: Maria Helena Martins, João Carlos Di Genio e Lúcio Kowarick - Fotomontagem: Jornal da USP
Cremilda Medina – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Maria Helena Martins (1941-2022), Memória

Di Genio (1940-2022), Memória

Lúcio Kowarick (1938-2020), Memória

Que triste perder parceiros na trajetória de estudos e na partilha dos afetos. Sábado passado, dia 12 de fevereiro de 2022, morreram duas pessoas de cruzamentos biográficos que marcaram minha memória. No próximo dia 17, a Universidade de São Paulo presta uma homenagem a um cientista social a que quero me unir pela contribuição ímpar que sempre lembro na história de minha pesquisa.

Começo pela menina minha colega e amiga dos anos 1950, em Porto Alegre, nos estudos da Aliança Francesa e, logo depois, nos primeiros anos de 1960, no curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Maria Helena Martins faria 81 anos no dia 16 de março e nos deixa um legado múltiplo que atravessa as duas universidades em que nós duas atuamos, a Federal do Sul e a Universidade de São Paulo. Mestre e pesquisadora da literatura infantojuvenil no curso de sua graduação em Porto Alegre, é na USP que se doutorou em Teoria Literária e Literatura Comparada e aí se dedicou à docência universitária. Sua obra atesta o rigor na pesquisa acadêmica: os registros biográficos fazem honra ao seu valor.

Mas quero lembrar de sua adolescência e nosso convívio quando fazíamos os deveres escolares em sua casa, onde cruzava com seu pai, uma personalidade muito especial. Mais tarde, já jornalista no início da década de 1960, viria a identificá-lo como um dos mais importantes psicanalistas locais. E Maria Helena elevou ao máximo possível a estatura de Cyro Martins. Em 1997, já pesquisadora internacional além dos compromissos na USP, a fiel filha criou o Centro de Estudos de Literatura e Psicanálise Cyro Martins (CELPCYRO), com intensa atividade a partir de então – cursos, seminários, publicações –, além, é claro, da preservação da obra do pai.

Ou seja, a menina que precocemente conheci voltada para a literatura no segundo grau, uniu a força da subjetividade analítica da herança paterna e reforçou a importância social e intimista do Ato da Leitura. (O que daria inúmeras reedições a um de seus livros, de 1982, publicado pela Editora Brasiliense, O que é a leitura.) É dessa cena de nossa adolescência e de nossas ingênuas interpretações literárias na casa do dr. Cyro Martins que guardo o afeto perene por Maria Helena Martins.

No mesmo dia, 12 de fevereiro de 2022, se noticia a morte de João Carlos Di Genio, figura pública de grande relevância nas universidades privadas brasileiras, que, por certo, lhe prestarão as devidas homenagens. Aos 82 anos, deixa seu principal legado, a Unip/Objetivo, que para além de uma universidade paulista se expandiu de forma intensa em outros territórios. Quando Di Genio prestou vestibular para medicina, em 1961 (casualmente um ano após eu também ter entrado na UFRGS), e passou em duas seleções em primeiro lugar, ainda não imaginava que seu sonho seria criar a própria universidade. Já em 1965, funda o Objetivo, cursinho pré-vestibular que se tornará um famoso ponto de circulação de estudantes na Av. Paulista de São Paulo e, em 1971, se torna o Colégio Objetivo.

Aí acontece meu cruzamento com Di Genio. Nesse mesmo ano, já radicada em São Paulo e contratada como auxiliar de ensino no Departamento de Jornalismo da Universidade de São Paulo, implantei a Agência Universitária de Notícias como órgão laboratório da formação de jornalistas. O chefe do departamento, o saudoso professor José Marques de Melo (1943-2018), sob inspiração de uma ideia do então professor e deputado Freitas Nobre, que morreu em 1990, me entregou o projeto que, no meu entendimento, correspondia aos debates latino-americanos de que eu participava em torno do Direito Social à Informação como uma ampliação da clássica Liberdade de Expressão. E assim surgiu um laboratório para desenvolver o que logo nomearia Signo da Relação ou comunicação de mão dupla: Ciência-Sociedade, Sociedade-Ciência, no lugar da difusão da informação científica.

Não sei como o projeto chegou aos ouvidos de Di Genio. O fato é que, em 1972, ao implantar as Faculdades Objetivo e entre elas o curso de Jornalismo, me surpreendeu com uma de suas imprevisíveis iniciativas. No fim de uma tarde, morava eu no Brooklin, chega um carro e um motorista à minha porta com o convite de me levar ao gabinete do dr. Di Genio, que ele queria muito ter uma conversa comigo. (Não havia nenhuma aparência de sequestro…) Então para lá fui conduzida e qual não foi a minha surpresa, o poderoso empreendedor da educação privada me relatou que fizera uma pesquisa de mercado e tinha encontrado a repercussão do sucesso da AUN (Agência Universitária de Notícias). E disso surgira a proposta que me fez: criar o referido laboratório já no primeiro ano de Jornalismo da Unip. Embora meu contrato com a USP fosse em tempo parcial, disse-lhe de imediato que minha vida estava ligada à universidade pública. Di Genio me convenceu que não interferiria na dedicação à USP e ao mestrado que cursava. Foi convincente e me prontifiquei a implantar o projeto.

Mas, como eu previa, em seis meses me despedi da universidade privada por certas incompatibilidades acadêmicas. Anos mais tarde, encontrei Di Genio num aeroporto, que, com humildade surpreendente, me cumprimentou com afeto e confessou que eu tinha razão quanto aos argumentos de minha carta de despedida. O que permanece acima de tudo em todo este episódio foi o reconhecimento externo de um laboratório implantado na USP em 1971-1972 e que permanece oportuno e significativo até hoje na comunicação ciência-sociedade, sociedade-ciência.

Passo a outro laboratório para me congregar às homenagens da Universidade de São Paulo, dia 17 de fevereiro, ao cientista Lúcio Kowarick (1938-2020). Na década em que voltei à Escola de Comunicações e Artes (ECA), dez anos após o afastamento por motivos políticos da ditadura militar – de 1975 a 1985 —, defendi o doutorado em 1986 e, no ano seguinte, propus ao Departamento de Jornalismo e Editoração, outra vez liderado pelo professor anistiado José Marques de Melo, um projeto de livro-reportagem, o São Paulo de Perfil. Ao primeiro exemplar escrito pelos alunos de graduação em 1987, Virado à Paulista, que reunia os perfis e propostas dos constituintes por São Paulo, hoje somam-se mais 25 exemplares e um inédito. O que quero salientar neste depoimento de memórias e homenagens é um dos títulos, muito especial.

Em 1991, os estudantes de Jornalismo da USP elegeram como pauta reportar as periferias de São Paulo. (1991, não 2021…) Daí se escreveram as reportagens do livro À margem do Ipiranga, vol. 8 da série São Paulo de Perfil. Como prática pedagógica e estratégia de pesquisa na Arte de tecer o presente, tinha por princípio compor as histórias de vida, o contexto coletivo, as raízes histórico-culturais com diagnósticos-prognósticos de especialistas. No caso, avaliamos que o sociólogo Lúcio Kowarick, da USP, era o autor indicado para escrever um ensaio sobre periferias em São Paulo. Ao visitá-lo em sua sala na FFLCH, o cientista social me surpreendeu com um pedido inusitado em especialistas: queria ler as reportagens para tomar conhecimento de situações vivas e considerá-las em sua reflexão. Nunca acontecera nem aconteceu depois tal valorização pelos especialistas do trabalho de campo do jornalista. E quando nos entregou seu texto – Periferias e subcidadania – realmente incorporara cenários captados na atualidade das reportagens.

Houve mais um momento memorável. O lançamento deste livro, como dos outros títulos, foi fora da USP, em ambientes condizentes com o tema. Neste caso, escolhemos a Câmara Municipal de São Paulo, com a presença de grupos de moradores das periferias, vereadores e autores/repórteres, bem como o cientista político, também autor do tema em debate. Outra vez surpreendente, Lúcio Kowarick, na mesa do auditório, se desempenhou com mais desembaraço no diálogo com os representantes comunitários do que seus colegas vereadores.

Guardo assim a memória da seminal força do ensaio, do ensaio-reportagem ou da reportagem-ensaio. Uma conjugação que dá o diferencial de Autoria. E como pé de página, quero registrar a admiração por um ensaísta que, a cem anos da Semana de Arte Moderna de São Paulo, escreveu num longo e profundo fôlego a saga complexa, plena de contradições desse momento histórico. Cito Rasga o coração”, de José Miguel Wisnik, publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S. Paulo de 13 de fevereiro de 2022. Se Darcy Ribeiro alargou, entre nós, os horizontes do ensaio, a escrita de Wisnik reafirma aberturas sem fim para um leitor ávido de informações, contextualizações complexas e interrogantes que não se apoiam em certezas. O que é possível na autoria ensaística.


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