Culturas de tradição oral nas megalópoles: resistência das comunidades ao assalto do mercado

Vitor Ramirez Lopes é graduando em Música pela ECA-USP

 13/06/2019 - Publicado há 5 anos
Vitor Ramirez Lopes – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens
Caio César Mateus Ferreira, de 23 anos, desde a infância morador da zona sul da cidade de São Paulo, conta a seguinte história:

“Catirina estava grávida e ficou com desejo de comer língua de boi, mas justamente a do animal preferido do patrão. O marido, sem saber o que fazer, cortou a língua do animal, que morreu. Desesperado e com medo do fazendeiro, o homem pediu ajuda aos indígenas para fazer um ritual e ressuscitar o bicho. Assim, surge o boi de caboclinho”.

Este mito relatado por Caio é o da tradição oral do bumba-meu-boi (também conhecida como boi de caboclinho), a qual é originária das regiões Norte e Nordeste do Brasil e é praticada em diferentes lugares da cidade de São Paulo: seja mais ao sul no distrito do Grajaú ou no Butantã (região oeste), onde essa festa é realizada no Morro do Querosene desde 1991. Outros exemplos de culturas de tradição oral praticadas na cidade de São Paulo são as festividades bolivianas que acontecem na Praça Kantuta, na região norte da cidade, e as festas japonesas que ocorrem na Liberdade, bairro em que o japonês é idioma corrente.

A permanência de um número significativo de comunidades capazes de manter suas culturas tradicionais em uma cidade que concentra o maior parque industrial brasileiro e foi um dos principais centros no processo de modernização desse país é um fato que precisa de uma análise mais detalhada; principalmente porque se trata de um processo comum a outros grandes centros urbanos tais como Milão, Buenos Aires e Cidade do México e mostra uma realidade diferente do prognóstico dos folcloristas do começo do século XX.

De fato, o rápido processo de urbanização das populações rurais e o maciço crescimento das cidades não eliminou as práticas de tradição oral e, ao contrário do que se esperava, essas tradições foram relativamente capazes de se adaptar à dinâmica urbana e comunicacional do século XXI e de se reproduzirem[1]. Todavia não são inexistentes certas dinâmicas de alienação impostas pelo capitalismo, e a influência nociva de seu processo de modernização sobre as práticas de tradição oral ainda permanece, mas readaptada à nova realidade social.

É preciso tornar evidente quais são essas dinâmicas às quais as práticas de tradição oral resistem; por isso, temos de fazer um recorte da cidade segundo este encadeamento: produção, circulação e consumo de mercadorias, dinheiro e mercado.

Conforme escreve o geógrafo David Harvey em seu livro Para entender o capital, o crescimento dos mercados e a adequação das necessidades humanas a uma lógica mercantil de produção e consumo ocorreram na medida em que o dinheiro se consolidou – em nível global – como o principal mediador das relações econômicas. Impulsionado pela expansão do capital, o dinheiro tornou-se o meio capaz de, por exemplo, articular todo o percurso feito por uma mercadoria desde sua produção em um continente até sua venda em outro e, portanto, de subsumir os laços entre produtor e consumidor na dinâmica do mercado.

Inseridos nessa lógica mercantil, os produtores de mercadoria trabalham em função do lucro obtido com a venda de seus produtos, os quais, submetidos à livre concorrência, são comprados pelo menor preço de mercado. Assim, quando o preço se transforma no único laço entre produtor e consumidor, os vínculos sociais que não se expressam no mercado tendem a desaparecer, fazendo com que as condições de trabalho e a vida dos produtores sejam desconsideradas por quem consome.

Nesse processo “a relação social determinada entre os próprios homens assume para eles a forma de uma relação entre coisas”, sendo esta última mediada pelas “forças do [próprio] mercado, as quais ninguém controla individualmente, [e que] regulam todos nós”[2]. Uma consequência dessa organização social fundamentada em uma vinculação interpessoal coisificada é que laços menos materiais, tais como os da cultura e o da história, fragilizam-se, dificultando, necessariamente, a continuidade das tradições orais.

Esse processo de coisificação capitaneado pelo mercado ocorre com ainda mais pureza na atual conjuntura de fragilização do Estado e de predomínio do neoliberalismo e, principalmente nas grandes cidades (centros do capital financeiro), acentua-se a dinâmica de dissolução das relações sociais não mercantis e por isso levando a uma altíssima fragmentação do tecido social urbano. Consequentemente, aumenta a formação de nichos culturais[3] na cidade, de verdadeiros aglomerados que podem até coabitar o mesmo espaço, mas que não necessariamente se conformam em uma cultura mais ampla e capaz de fornecer um sentido concreto para todos os seus habitantes[4].

Ilusoriamente seria possível pensar que a cultura de massas desenvolvida ao longo do século XX seria capaz de articular esse liame social, mas o intento das muitas comunidades de retomar seu passado histórico e cultural e de vivificar suas tradições orais é prova de que essa cultura de massas não lhes serve, e de que ela não é capaz de lhes dar sentido. É esse o caso, por exemplo, de Caio, jovem citado no começo deste artigo, que desenvolveu um trabalho de recuperação das tradições orais do Nordeste na população imigrante de seu bairro[5], ou do Grupo Cupuaçu, que trabalha desde 1986 na retomada das festividades do bumba-meu-boi no Morro do Querosene (localizado no bairro Butantã) e as realiza anualmente, com um público de mais de 5 mil pessoas.

Por fim, para sintetizar a importância que as tradições orais têm para suas comunidades, vale citar o trabalho do etnomusicólogo Alberto Ikeda:

“Há de considerar que os fenômenos das culturas tradicionais guardam valores morais, religiosos, políticos, lúdicos, estéticos e outros tantos herdados, e que, portanto, de alguma forma refletem a própria história das suas comunidades, repondo o passado no presente, e sendo então sempre atuais. São práticas aglutinadoras, que repetidas ciclicamente reforçam os valores socialmente aceitos e importantes para os grupos e indivíduos, vitalizando-os. Por serem fatos preservados e geridos coletivamente, são sempre práticas de identificação e inclusão social, e, até mesmo, de resistência política diante dos problemas que as comunidades enfrentam, assim como fazem frente à avalancha comunicacional cotidiana a que estão submetidas”[6].

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[1] Ver Alberto T. Ikeda, “Culturas populares no presente: fomento, salvaguarda e devoração”.

[2] Ver David Harvey, Para entender o capital.

[3] Ver David Harvey, A condição pós-moderna.

[4] Esse sentido concreto que a cultura de uma comunidade tem para ela mesma é visível em qualquer pesquisa sobre a prática da cultura tradicional e sua relação com os modos de vida da comunidade; à guisa de exemplos indicamos a tese Os sons do Rosário: um estudo etnomusicológico do congado mineiro – Arturos e Jatobá, de Glaura Lucas, e o disco World library of folk and primitive music românia, gravado por Lomax Coll.

[5]Ver o relato de Caio e da comunidade do Morro do Querosene em: https://www.agenciamural.org.br/os-guardioes-da-cultura-popular-em-sao-paulo.

[6]Ver Alberto T. Ikeda, “Culturas populares no presente: fomento, salvaguarda e devoração”.


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