Concursos para ingresso na carreira docente na USP: temos realmente autonomia?

Por Alcindo Aparecido dos Santos, Alicia Juliana Kowaltowski, Deborah Schechtman e Mauro Bertotti, professores do Instituto de Química da USP

 14/03/2024 - Publicado há 2 meses
Alcindo Aparecido dos Santos – – Foto: Arquivo pessoal/IQ
Alicia Juliana Kowaltowski – Foto: Arquivo pessoal/IQ
Déborah Schechtman – Foto: Arquivo pessoal/IQ
Mauro Bertotti – Foto: IEA

 

A USP aspira à condição de universidade de classe mundial, Humboldtiana, atraindo a atenção da comunidade internacional por atuar na expansão contínua da fronteira do conhecimento, desenvolvendo ciência e tecnologia de qualidade e contribuindo para a compreensão das sociedades e culturas humanas. Alunos formados neste ambiente são mais bem preparados para aprender continuamente de maneira racional, inovadora e inquiridora. A manutenção e aprimoramento de uma cultura universitária com estas características exige o recrutamento de um corpo docente altamente qualificado e a sua contínua renovação.

Atributos desejados em um candidato a uma vaga de professor doutor na USP incluem o conhecimento acumulado na temática do concurso, comprovado pela produção de artigos, livros e outros conteúdos com visibilidade nacional e internacional; interesse na formação de um grupo de pesquisa apoiado por recursos oriundos de agências de fomento; projeto de pesquisa na fronteira do conhecimento, sólido, ousado e criativo, alinhado com temas de interesse da instituição; capacidade efetiva de ensinar e orientar em nível de graduação e pós-graduação, empregando métodos eficientes e que tornem a aprendizagem um processo realmente instrutivo e significativo; interlocução com membros da comunidade acadêmica e científica nacional e internacional; disposição para engajar-se em atividades de disseminação do conhecimento junto à sociedade.

Em universidades do exterior, o processo de seleção para a ocupação de posições acadêmicas é tipicamente feito com base no desempenho nas áreas de interesse, e considera-se que a produção de conhecimento outorga ao candidato natural domínio das temáticas relevantes. Portanto, a realização de provas para a aferição de experiência e sabedorias, nessas instituições, não faz parte do processo de seleção. Interessa a elas avaliar a potencialidade do candidato na produção de conhecimentos, capacidade de angariar recursos para desenvolver seus projetos de pesquisa e disposição para ministrar aulas. Assumir compromissos administrativos e contribuir para manter um ambiente saudável, cooperativo e inclusivo são também aspectos desejados, além da capacidade de interagir produtivamente com outros membros da instituição. O ingresso na instituição é feito inicialmente pela análise do currículo, que contém uma descrição das atividades desenvolvidas pelo candidato. Após uma pré-seleção de candidatos mais compatíveis com a posição, seminários, entrevistas, cartas de recomendação e apresentação de projeto de pesquisa fazem parte dos processos avaliativos tipicamente empregados.

No Brasil, o ingresso na carreira docente em instituições públicas é feito exclusivamente com base em concursos. Como a maioria deles possui grande número de candidatos inscritos, as unidades usualmente optam pelo modelo contendo uma prova escrita, pois ela é eliminatória. Assim, a banca lida com um número mais adequado de candidatos na etapa seguinte, qual seja, o julgamento do memorial com prova pública de arguição e a prova didática.

A prova escrita é um instrumento pouco eficiente e não é empregada nas universidades estrangeiras. No formato adotado na USP, em que se cria uma lista de dez pontos e um deles é sorteado, o componente fortuito tem peso exagerado. Uma vez que a lista de pontos é criada pela banca, com base no programa do concurso, a relação de itens pode ser significativamente extensa, de tal forma que candidatos com currículos diferenciados podem ser eliminados já nesta etapa se eles tiverem menor capacidade de discorrer sobre o ponto sorteado. De outro lado, candidatos com potencial acadêmico e científico não evidenciado, com poucas chances de sucesso no concurso, podem ser aprovados para a fase seguinte se o ponto sorteado for aquele sobre o qual eles têm alguma experiência acumulada, eventualmente por maior contato com o tema durante a pós-graduação ou por experiência didática pregressa. Além do caráter fortuito e pouco preditivo, o processo na USP é pouco eficiente, pois envolve leitura pública das provas pelos candidatos. Esta ação demanda muito tempo e não conduz a ganhos para a avaliação.

A USP adota a prova escrita como elemento de seleção de cunho eliminatório, pois se argumenta que esta etapa pode ser documentada, tem características objetivas e, portanto, pode ser usada legalmente para filtrar melhor a concorrência. Entretanto, tal prova não consiste em elemento preditivo eficiente e não possui sintonia com as atividades a serem realizadas pelo docente no exercício de suas funções. De fato, consiste em item de avaliação não utilizado em universidades de grande destaque ao redor do mundo. Havendo uma alternativa mais eficiente para selecionar os candidatos em uma etapa preliminar do concurso, a prova escrita poderia ser excluída para as unidades que assim o desejassem.

Uma prova eliminatória baseada na avaliação do memorial seria um indicador mais preciso para aferir se um candidato possui os predicados minimamente exigidos pela instituição, pois seriam levados em conta os feitos acadêmicos e científicos que o candidato construiu até aquele momento. Embora possa haver resistências de alguns juristas ao uso desta prova como etapa eliminatória por seu caráter supostamente “subjetivo”, cumpre ressaltar que ela já existe nos concursos da USP e, via de regra, com peso maior do que o das demais provas. Portanto, a banca possui todos os elementos para fazer julgamento de mérito criterioso e emitir notas pautadas em parâmetros bem estabelecidos pela comunidade acadêmica. Deve-se insistir na premissa de que a USP possui autonomia acadêmica e pode fazer uso dela para demonstrar sua autoridade em um assunto de vital relevância para a própria existência: a renovação qualificada de seu corpo docente. Propõe-se, desta forma, que a prova de julgamento do Memorial tenha caráter eliminatório com base em parecer circunstanciado elaborado por cada membro da banca, levando em consideração o perfil de candidato desejado pela instituição e descrito no edital. A prova de julgamento do Memorial seria feita de acordo com critérios objetivos, descritos no edital do concurso, de modo a afastar os riscos de que eventual subjetividade possa macular a impessoalidade do certame. Para conferir objetividade ainda maior ao processo, a banca deveria pontuar as atividades dos candidatos em três diferentes vertentes, com pesos previamente definidos para Ensino, Pesquisa e Extensão, examinando a qualidade dos trabalhos executados e a contribuição para a área ou para a sociedade.

No ato da inscrição, além do memorial, sugere-se que os candidatos incluam também um plano de atividade docente, em que constem informações sobre como pretendem atender aos anseios da instituição com base em suas trajetórias acadêmicas e científicas. Neste documento, deve ser incluída adicionalmente uma proposta de projeto de pesquisa. Este deve ser caracterizado por inovação, ousadia e criatividade em temáticas de interesse da instituição e pautado no estado da arte do campo de investigação.

A formação de recursos humanos se faz pela troca de experiências entre professores (e orientadores) e alunos. Tal processo pode se dar de inúmeras formas e, sendo o ensino um dos aspectos mais importantes do trabalho de um docente, a aferição de habilidades e competências no processo ensino-aprendizagem deve constituir-se em item importante de um concurso. Desta forma, a prova didática certamente é uma ferramenta bastante útil para a banca avaliar se o candidato demonstra conhecimento em determinada área e como o transmite. Além disso, a aferição da adequação dos conteúdos selecionados, postura perante a audiência, habilidades de comunicação e expressão, e interesse no real aprendizado dos alunos são também parâmetros de avaliação, o que torna esta prova um item de elevada importância na seleção de um docente para a USP.

A prova didática tem o objetivo de avaliar a capacidade de planejamento de aula, o domínio da matéria e a relevância dos itens selecionados. Como a eliminação da prova escrita pode diminuir a amplitude da avaliação de conhecimentos dos candidatos sobre temas básicos do programa do concurso, seria interessante haver também algumas mudanças na prova didática. No novo modelo, propõe-se a exclusão do sorteio de ponto e a realização da prova com base no programa do concurso em duas etapas: 1) Apresentação da aula sobre tema escolhido pelo candidato (30 a 40 minutos) e 2) Arguição da banca (60 minutos) sobre o conteúdo da aula, modo de apresentação, itens selecionados e expectativas de aprendizagem perante a abordagem adotada pelo candidato.

Em resumo, sugere-se um modelo de concurso de ingresso adicional ao existente, em que a etapa eliminatória consistiria no julgamento do memorial. Os candidatos aprovados nesta fase preliminar fariam duas outras provas: 1) Arguição do memorial e do plano de atividade docente e 2) Prova didática modificada, em tema escolhido, seguida de arguição.

A USP é uma instituição pública e sujeita à Constituição. É financiada por recursos da sociedade, razão pela qual deve manter padrões de gestão elevados e perseguir sua missão institucional contando com os melhores profissionais. Estes devem ser contratados à luz da legislação vigente, mas com algum nível de discricionariedade para garantir que os processos de seleção sejam criativos, mais preditivos da atuação futura e baseados no mérito. Um padrão burocrático de administração com controles rígidos e pouco afeitos ao modelo de uma instituição acadêmica inviabiliza saltos quantitativos de excelência, aumentando a distância que separa a USP das congêneres internacionais com as quais ela pretende se equiparar e, em última instância, fazendo pior uso do investimento público que a sustenta.

A proposta apresentada tem aderência à Constituição na medida em que a figura do “concurso público” é respeitada, mas são introduzidos elementos novos de avaliação que podem aperfeiçoar o processo, tornando-o mais contemporâneo, eficiente e compatível com as exigências do cargo a ser preenchido. Dada a prerrogativa de autonomia acadêmica e administrativa, a USP pode incluir atos discricionários nos concursos e dispor de certa margem de liberdade para a apreciação de competências de forma mais plástica, sem que isso incorra em desrespeito às leis vigentes e receio de contestações judiciais.

As ideias aqui expressas são oriundas de documento elaborado no ano passado por um grupo de trabalho composto pelos autores do artigo. O referido documento foi discutido, aprovado na Congregação do Instituto de Química da USP e encaminhado à Reitoria. O cerne da proposta vai ao encontro de reflexões do professor Hernan Chaimovich e da proposta de docentes do Instituto de Biociências, disseminadas em artigos publicados no Jornal da USP.
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