Passou da hora de rever o processo de contratação de professor doutor na USP

Por Antonio Carlos Marques, Ana Paula Aprígio Assis, Carlos Arturo Navas Iannini, professores do Instituto de Biociências da USP, e outros autores*

 27/02/2024 - Publicado há 2 meses
Antonio Carlos Marques – Foto: Arquivo pessoal
Ana Paula Aprígio Assis – Foto: Arquivo pessoal
Carlos Arturo Navas Iannini – Foto: Arquivo pessoal
Cada docente de USP provavelmente tem uma opinião sobre o nosso sistema de ingresso na carreira no nível de professor(a) doutor(a). A maioria dessas opiniões possivelmente é motivada pelas experiências em seu próprio concurso de ingresso, que não raramente deixou insatisfações e/ou traumas. Apesar de ser quase senso comum de que nosso processo de admissão docente é impróprio e deve mudar, os anos passam e continuamos essencialmente na mesma.

Hernan Chaimovich fez uma exposição brilhante sobre algumas questões práticas, filosóficas e sociais envolvidas na contratação de docentes no magistério superior. Assinamos embaixo de todas as colocações do arguto professor. Contudo, há ainda muitos outros pontos que precisam ser urgentemente revistos, especialmente quando se adentra o cipoal regimental.

Com isso em mente, a Congregação do Instituto de Biociências (IB) constituiu um grupo de trabalho para discutir as normativas relacionadas ao Regimento Geral da USP, bem como aquelas do próprio Regimento do IB, além de outros aspectos envolvidos no processo. Esse grupo preparou um relatório técnico que foi submetido e aprovado pela Congregação e que, esperamos, contribua para dar tração à discussão de mudanças no processo. Alguns poucos aspectos deste relatório, que tangem nosso Regimento Geral, são apresentados abaixo.

O Regimento Geral da USP estabelece diretrizes para concursos, abrangendo desde a solicitação de cargos até a nomeação das(os) candidatas(os). Reconhecemos que, por ser uma Resolução do Conselho Universitário (Co), alterações nesse regimento podem ser desafiadoras; contudo, acreditamos na necessidade contínua de reflexão e aprimoramento de seu conteúdo, e que faz-se urgente a USP enfrentar essa questão.

As propostas de novos cargos docentes atualmente iniciam-se nos conselhos de departamentos, com aval do Conselho Técnico-Administrativo e da Congregação (Art. 122). No entanto, na presente versão, falta a exigência de que tais propostas estejam alinhadas aos projetos acadêmicos da unidade e dos departamentos. Tal desalinhamento faz com que a alocação de cargos não esteja ligada aos planos estratégicos que a própria Universidade aprova. Na prática, o processo é anacrônico em relação ao progresso feito pelo Regimento da Comissão Permanente de Avaliação (Resolução nº 7272 de 23/10/2016), que estabelece um processo dialógico de construção de metas acadêmicas e prioridades por meio da Avaliação Institucional. Nesse sentido, a USP deve fortalecer sua cultura de planejamento e garantir uma política institucional transparente e duradoura de alocação de cargos, discutida e aprovada no Co e em suas comissões assessoras, oferecendo estabilidade para o planejamento das unidades. Em um cenário ideal, esse planejamento deverá aumentar a qualidade dos projetos acadêmicos e permitir a estruturação do quadro docente da Universidade alinhado às suas necessidades e ao dimensionamento de seus compromissos com a sociedade.

O Art. 122 também define que “os cargos da carreira docente serão distribuídos para cada departamento”. Ao não permitir concursos mais amplos, envolvendo mais de um departamento, esse dispositivo retarda as metas atuais de interdisciplinaridade da Universidade. Vale notar que o §2º do mesmo artigo permite concursos para o cargo de professor titular, aí sim envolvendo mais de um departamento. Faz-se necessário expandir essa possibilidade para a contratação de professor doutor, mantendo possível a intenção da interdisciplinaridade também para esse nível da carreira docente.

Um tema aparentemente simples, mas que afeta todo o processo dos concursos, envolve a compreensão adequada do que significa “Programa” (Art. 125 § 2º et seq.), ora definido como “especialmente elaborado com base em disciplina ou conjunto de disciplinas, de modo a caracterizar uma área de conhecimento” (Art. 125 § 3º). É essencial explicitar que uma área do conhecimento é algo mais complexo, não ligado apenas a disciplinas específicas da graduação, que podem ser sugeridas de maneira exemplificativa, mas não como um rol taxativo do escopo do concurso. Em uma compreensão mais atual e abrangente da Universidade, a área de conhecimento inclui também as atividades de extensão e de pesquisa, além do ensino na pós-graduação. Essa compreensão é, além de tudo, congruente com o Plano de Atividade Docente, que acompanha o processo de solicitação da vaga. Como consequência, essa concepção enfatiza a flexibilidade em relação ao perfil da(o) profissional a ser contratada(o) e está em consonância com os projetos acadêmicos integrados do(s) departamento(s) e unidade.

O atual Regimento Geral da USP também falha por não definir alguns termos, o que gera incertezas e compromete os concursos. Por exemplo, a falta de uma definição clara do termo “memorial circunstanciado” (Art. 133 I et seq.), algo restrito a alguns ambientes acadêmicos brasileiros, frequentemente leva a recursos litigiosos ou diminui a qualidade do processo avaliativo. A Unidade deveria poder esclarecer o que espera que esteja incluído nesse documento, inclusive sobre as perspectivas acadêmicas e a motivação em pesquisa, ensino e extensão da(o) candidata(o). A qualificação dessa informação permite identificar melhor o perfil desejado e garante maior isonomia entre as(os) candidatas(os), inclusive para as(os) que não têm familiaridade com os ritos e costumes da instituição contratante, especialmente estrangeiras(os).

Acreditamos, ainda, que a maior deficiência do processo atual reside nas provas adotadas para a seleção. De início, a eliminação de candidatas(os) por meio da prova escrita (Art. 135 § 2º I et seq.) não condiz com um cenário acadêmico internacional e de alto nível. O conhecimento dos pontos da prova com 24 horas de antecedência, e o sorteio de um desses pontos imediatamente antes da prova, é determinante do desempenho de candidatas(os), que podem ter a sorte de trabalhar naquele tema específico, independentemente de terem menor ou maior expressão e potencial acadêmico. Por ora, a alternativa regimental para eliminar a prova escrita é realizar o concurso em fase única (Art. 135 § 1º), com todas(os) candidatas(os) fazendo todas as provas, mas isso não é factível na maior parte dos concursos.

É imperativo repensar a forma de realizar uma seleção inicial de qualidade nos concursos. Se não for viável adotar o modelo de short list baseado em currículo/memorial, comum em universidades internacionais renomadas, uma alternativa promissora seria a pré-seleção baseada na avaliação de projetos acadêmicos abordando pesquisa, ensino e extensão. As(os) candidatas(os) apresentariam esses projetos no momento da inscrição, e estes seriam avaliados pela Comissão Julgadora em uma etapa pré-presencial. A Comissão Julgadora inclusive poderia detalhar suas avaliações em pareceres específicos para cada projeto. Esse método, de certa forma, espelha o procedimento atual da prova escrita, pois assegura a apresentação de um documento pelo candidato – nesse caso, um projeto, em vez de uma prova manuscrita, assegura uma avaliação individual e prevê o anúncio das notas de maneira transparente. A grande vantagem deste modelo é sua capacidade de oferecer informações mais relevantes e de minimizar a influência do acaso no processo.

A prova didática (Art. 135 § 1º II et seq.) também requer revisão e aperfeiçoamento. Atualmente, são propostos às(aos) candidatas(os) dez temas relacionados ao programa. Um desses temas é sorteado e a(o) candidata(o) tem 24 horas para preparar e apresentar sua aula. Esse procedimento não só é excessivamente dependente da sorte, mas também é pouco realista, já que preparar uma aula em tão pouco tempo não condiz com a realidade acadêmica de excelência. Adicionalmente, tal processo pode ser desvantajoso para candidatas(os) neurodivergentes, que podem ter demandas temporais distintas, tornando-se, assim, discriminatório. Uma abordagem mais adequada seria permitir que a(o) candidata(o) selecione um tema, relacionado ao programa, e apresente sua aula à comissão julgadora no momento presencial do concurso. Este método, além de ser mais humanizado, proporciona uma avaliação mais precisa das habilidades didáticas essenciais para o futuro docente.

Como dito, esses são alguns dos pontos levantados, relacionados ao Regimento Geral da USP, apresentados aqui de forma sumária. Há diversos outros indicados em nossa avaliação, e certamente nossa comunidade teria capacidade de indicar outros tantos. A pergunta que fica é: se estamos convencidos que temos um processo deficiente de contratação, talvez um dos piores do mundo, o que falta para tomarmos a atitude de rever isso?

*Eny Iochevet Segal Floh, Fernando Portella de Luna Marques, Glauco Machado, Igor Cesarino, Maria Aparecida Visconti, Maria Magdalena Rossi, Maria Rita dos Santos e Passos Bueno, Paulo Takeo Sano, Taran Grant, professores do Instituto de Biociências da USP.

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