Ciclone Idai no sul da África: tragédia é pior do que se imaginava

Laura Moutinho é livre-docente em Populações Africanas e Afrobrasileiras no Departamento de Antropologia da USP;
Luiz Henrique Passador é docente da Unifesp e encontra-se em Moçambique em pesquisa de pós-doutorado

 25/03/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 27/03/2019 as 12:18
Laura Moutinho – Foto: Entrevista / Canal Futura via Youtube
Luiz Henrique Passador – Foto: via Youtube
Na quinta-feira, 14 de março deste 2019, o ciclone tropical Idai atingiu a região central de Moçambique, deslocando-se para o interior e atingindo o Zimbábue, a oeste, e depois o Maláui a noroeste.

Em muito pouco tempo, começaram a circular mensagens pelas redes sociais conclamando a ajuda humanitária. O quadro é devastador. A cidade da Beira, capital da província de Sofala e segunda maior cidade do país, foi a primeira a ser atingida e onde foram registrados os maiores impactos em área urbana. Igualmente a província de Manica e sua capital, Chimoio, foram fortemente afetadas. As províncias da Zambézia, de Tete e de Inhambane também foram parcialmente afetadas, embora em menor grau.

O ciclone veio agravar um quadro já crítico na região central do país, que vinha enfrentando calamidades produzidas por cheias. A passagem do ciclone causou extensos alagamentos em outras áreas, fazendo desaparecer localidades inteiras sob as águas. Não se trata de uma figura de retórica: localidades inteiras desapareceram e com elas seus moradores. Um dos autores deste texto, Luiz Henrique Passador, vem acompanhando essa tragédia a partir de Maputo, capital do país, que não foi atingida pelo ciclone.

As chuvas continuavam a cair uma semana após o ciclone ter-se dissipado e o ciclo de desastres ainda não se concluiu. Comportas de barragens foram abertas no Zimbábue, para evitar que se rompam devido ao acúmulo de água produzido pelo ciclone e as chuvas, e isso fez aumentar o nível dos rios nas áreas afetadas, causando mais inundações.

Residências, hospitais, escolas, armazéns, estradas e pontes foram destruídas. Fala-se em destruição de até 90% da cidade da Beira. As comunicações e o fornecimento de energia elétrica e água encanada entraram em colapso e muito lentamente começam a ser restabelecidas. Há áreas isoladas e inacessíveis por terra e mesmo por helicópteros. Nas zonas periurbanas e rurais, onde predominam construções de material precário, a destruição foi ainda mais crítica.

A população das áreas atingidas sofreu e continua a sofrer com as condições calamitosas.  A destruição de suas casas e das infraestruturas produziu um número de desabrigados, que calcula-se em algumas centenas de milhares. Há no momento registro de mais de 400 mortes apenas em território moçambicano, mas o número tende a subir, uma vez que ainda há dificuldade de se fazer levantamentos precisos. Imagens aéreas mostram pessoas sobre telhados e copas de árvores a se abrigar das inundações e esperar resgate. Relatos informais e não oficiais que circulam nas redes sociais descrevem corpos a boiar nas águas, áreas alagadas infestadas por crocodilos, saques e violência em áreas urbanas. Está-se a projetar também um grande impacto na saúde causado por surtos de cólera, malária e outras doenças.

Há falta de comida, água potável e bens de primeira necessidade, agravada pelas dificuldades de se fazer chegar ajuda humanitária aos afetados. O colapso das comunicações e do fornecimento de energia elétrica dificulta a retirada de dinheiro nos bancos para se comprar os poucos mantimentos ainda disponíveis nas áreas urbanas, que tiveram seus preços aumentados. As plantações familiares, base da subsistência da maioria da população e do abastecimento de hortículas, foram completamente devastadas.

Os impactos de desastres climáticos são sempre aprofundados em contextos de alta vulnerabilidade social como o moçambicano. O país está entre os dez países com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e entre os dez países com maior Coeficiente de Gini (que mede a desigualdade de renda entre os segmentos populacionais mais ricos e os mais pobres num mesmo país). Ou seja, apesar de ter apresentado crescimento econômico razoavelmente constante nos últimos anos, Moçambique conjuga altos índices de pobreza e desigualdade social e permanece sendo um dos países mais pobres do mundo, com grande dependência de ajuda externa para enfrentar seus problemas estruturais. Isso impacta fortemente a capacidade de resposta local para mitigar os problemas causados pelo ciclone Idai e os futuros esforços para reconstrução das áreas afetadas.

A população das áreas atingidas sofreu e continua a sofrer com as condições calamitosas

Ainda assim, o governo, as organizações não governamentais nacionais e internacionais, as igrejas, a iniciativa privada e especialmente a sociedade civil organizada tem-se mobilizado localmente para prestar ajuda humanitária para as vítimas do ciclone na área afetada e em outras regiões do país. Em Maputo, capital de Moçambique, assistiu-se na semana passada a um grande movimento de solidariedade com engajamento voluntário de indivíduos e de organizações da sociedade civil para recolha de doações para ajuda humanitária que foi enviada à cidade da Beira por navio no sábado, dia 23/03.

Segundo dados publicados pelo movimento Unidos por Beira em sua página no Facebook, foram carregados 76 contêineres com kits de mantimentos montados a partir das doações recolhidas para famílias que necessitam de ajuda – sendo 48 contêineres resultantes de doações voluntárias diretamente ao movimento e outros 28 com doações recolhidas por outras organizações que se articularam com essa organização. Participaram da ação cerca de 4.500 voluntários num dos terminais do porto de Maputo.

Além dessa mobilização interna, assiste-se ainda a uma mobilização internacional para a necessária ajuda humanitária. A ONU já está a prestar ajuda na área afetada através de seus organismos (como UNICEF e PMA), da mesma maneira que organizações internacionais como a Cruz Vermelha Internacional e os Médicos Sem Fronteiras, entre outras. A União Européia já anunciou que fará doações para ajuda humanitária, e países como África do Sul, Índia, Portugal e Espanha estão prestando apoio logístico para as ações necessárias. Dessa forma, a comunidade internacional  vem-se juntando aos esforços internos para enfrentar o que já vem sendo considerado como um dos maiores desastres de causa climática ocorrido no hemisfério sul.

Nas áreas afetadas também há mobilização da sociedade civil organizada. O Grupo de Mulheres de Partilha de Ideias de Sofala, GMPIS Sofala, lançou uma promissora campanha de solidariedade. Trata-se de uma rede feminista de associações de base comunitária, integrantes da Marcha Mundial das Mulheres. A arrecadação desta ação solidária será distribuída entre 29 associações do GMPIS, que atuam nas comunidades afetadas. O grupo tem uma página no Facebook onde podem ser encontradas informações para enviar doações.

No Brasil, estudantes moçambicanos da Unicamp também se organizaram para a recolha de doações através de depósitos e transferências em conta bancária aberta para essa finalidade. Informações podem ser obtidas através de contatos com Catarina Casimiro Trindade, integrante desse grupo de estudantes, também através de sua página no Facebook.

As doações também podem ser feitas diretamente para as organizações internacionais que estão atuando na área afetada, como Cáritas, Cruz Vermelha, ONU, Unicef e Médicos Sem Fronteiras.

Como pesquisadores que atuam na parte austral da África, com amigos e parceiros e uma longa história na região, esperamos que o governo brasileiro viabilize esforços para envio de missão humanitária às zonas afetadas imediatamente.

 

 

 

 

 


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.