A revisão do Plano Diretor Estratégico: mobilidade urbana e transportes de massa

Por Ivan Maglio, pesquisador do Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e do Laboratório de Áreas Verdes da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

 02/08/2023 - Publicado há 9 meses
Ivan Carlos Maglio – Foto: Arquivo pessoal
A aprovação da Lei 17.975 sobre a revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo, em 8 de junho de 2023, sancionada com alguns vetos pelo prefeito, deixou muitas questões em aberto, em especial quanto aos impactos gerados pela permissão de verticalização com edificações sem limites de altura, nas chamadas áreas de influência dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (EETU), situados no entorno dos eixos de mobilidade e transportes existentes e planejados até 2029.

Apesar das movimentações e protestos dos movimentos de moradia, de urbanistas e de especialistas, as áreas de influência dos EETU foram ampliadas de 600 para 700 metros no raio de estações de metrô e de 150 para 400 metros ao longo dos eixos dos corredores de ônibus, que, ainda assim, poderão elevar o território da cidade a ser adensado e verticalizado em cerca de 150%.

O conceito de maior adensamento construtivo e populacional no entorno dos eixos de mobilidade e transportes é adotado mundialmente pelas médias e grandes cidades, e vem sendo gradualmente adotado no Brasil desde 1965, no Plano Diretor de Curitiba inicial, de autoria do urbanista Jorge Wilheim, que o adotou também em São Paulo no Plano Diretor Estratégico de 2002. Posteriormente, o conceito teve sua aplicação radicalizada no Plano Diretor Estratégico de São Paulo em 2014, o qual foi objeto da atual revisão agora, em 2023.

É importante ressaltar que, apesar das muitas demandas da sociedade civil para alteração dos territórios afetados pelos Eixos, a prefeitura retirou do escopo da revisão promovida pelo Executivo esse tema, negando todos os pedidos realizados pela sociedade civil. Numa contradição sem precedentes para um processo participativo minimamente sério, o tema virou o principal objeto da revisão do PDE no âmbito da Câmara Municipal, e continuando a não atender todos os pedidos de alteração de limites específicos realizados pela sociedade civil, sob o mesmo pretexto de discuti-los na futura revisão da lei de zoneamento ainda em 2023.

Outro conceito urbanístico associado ao adensamento junto aos eixos de transporte é o conceito de cidade para as pessoas, mediante incentivo ao transporte de massas e o desincentivo ao uso do carro e do transporte individual para deixar a cidade mais sustentável e menos poluída e com mais espaços destinados ao transporte ativo, com as ciclovias e o pedestrianismo.

O conflito vem ocorrendo desde o PDE 2014 pela maneira que a delimitação dos EETU foi realizada e começou a ser aplicada. A ampliação do território verticalizável foi realizada sem estudos prévios e vem causando um desequilíbrio absurdo na economia da cidade, bem como a ampliação dos riscos e impactos sociais, ambientais e climáticos que esse projeto poderá causar para a cidade de São Paulo.

A ampliação das áreas destinadas à verticalização e adensamento foi implantada sem que nenhum estudo de impacto urbano ou ambiental, econômico ou de capacidade de suporte dos sistemas de transporte tenha sido realizado para justificar e calibrar essa proposta. A ausência desses estudos e a imposição da ampliação dos limites dos EETU foram novamente colocadas como foco dessa revisão, mas, novamente, sem considerar os grandes impactos ambientais em curso na maioria dos bairros e subprefeituras, como Pinheiros, Vila Mariana, Perdizes, Butantã, Belém, Tatuapé, Santana e outros.

Nos EETU poderão também ser aumentados o número de garagens permitidas nos imóveis e o tamanho das unidades, anteriormente limitado a 80m² mediante pagamento de outorga onerosa para construir acima em até quatro vezes, mas chegando a até oito ou nove vezes com aplicação de outros condicionantes. Entre muitas outras questões, estes aspectos desmontam completamente o modelo urbanístico proposto no PDE 2014, de redução do uso do carro e privilegiar a oferta de moradias para as classes de renda mais necessitadas junto a esses eixos de mobilidade.

Entre as questões que foram reiteradamente colocadas pelos vários setores representativos, ressalta-se o impacto urbano ambiental causado pelos Eixos de Estruturação Urbana na configuração atual original dos bairros e no meio ambiente, gerando impactos negativos nos aspectos sociais, expulsando populações e afastando comércios tradicionais (gentrificação), com impactos ambientais nas drenagens e na impermeabilização do solo e, em consequência, com o aumento da vulnerabilidade aos riscos climáticos nos vários bairros das Subprefeituras da cidade, que foram explicitados pelas Associações de Bairros de Perdizes, Bela Vista, Pinheiros, Vila Mariana, Jardins e Consolação, entre outras, e pelos movimentos sociais e ambientais da cidade.

A ausência de estudos ambientais e de capacidade suporte requeridos pelo Estatuto da Cidade e Constituição Federal de 1988 ocorre desde a criação dos EETU no PDE 2014, passando pelo PL da Revisão apresentado pelo Executivo, e agora foi escancarado no substitutivo apresentado pelo relator, ou seja, a ampliação da área de verticalização ocorreu para privilegiar o atendimento aos interesses imobiliários para novas ofertas imobiliárias, sem analisar os efeitos sobre os demais objetivos do PDE, de gerar moradia, transporte e proteger o meio ambiente, e sem avaliar os riscos climáticos e impactos ambientais decorrentes dessa grande permissão à verticalização na cidade.

A própria ampliação do uso de garagens, anteriormente limitadas a uma vaga por apartamento nos EETU, mediante simples pagamento adicional, poderá causar mais impacto no sistema viário, vai na direção contrária ao desestímulo ao uso do carro e poderá causar a geração de aumento no tráfego, engarrafamento, poluição do ar e a geração de emissões de gases de efeito estufa que contribuem para o aquecimento global e as mudanças climáticas extremas.

Além da polêmica expansão dos Eixos de Estruturação Urbana e sem a apresentação de nenhum estudo de capacidade suporte ou de estudo de impacto ambiental, observamos que as áreas do Arco do Tietê, situadas na várzea do Rio Tietê e do Arco no entorno do Rio Pinheiros, também serão tratadas como eixos destinados ao mesmo grau de verticalização pelo projeto até 2024, com adensamento com até quatro vezes a área dos terrenos e sem limites de gabarito.

Os riscos decorrentes do aumento das chuvas e inundações prognosticadas pelas mudanças climáticas, que, a exemplo do ocorrido no bairro de Moema em março de 2023, encontram a cidade frágil, pouco resiliente, em especial com seríssimas deficiências na drenagem e na permeabilidade urbana, e nos sistemas de transporte, e despreparada para enfrentar a emergência climática, e os impactos decorrentes desses eventos. Uma senhora morreu presa no seu próprio carro devido à inundação em Moema, além das perdas materiais.

A revisão do Plano Diretor aprovada pela Câmara e sancionada pelo prefeito não avançou para enfrentar os gravíssimos problemas sociais, ambientais e climáticos que a cidade enfrenta e enfrentará e é ilegítima por não representar minimamente a vontade da população da cidade, uma vez que os processos de consulta não atenderam ao exigido pelo Estatuto da Cidade e pelas regras constitucionais, sobre a democracia participativa, uma vez que as demandas específicas de redução dos eixos realizadas pelas representações de vários bairros foram absolutamente desconsideradas.

E todo esse debate de verticalização ocorre sem ampliar a oferta do transporte coletivo em São Paulo, que demanda maiores investimentos em linhas de metrô e corredores de ônibus, que sempre receberam pouco incentivo desde os anos 1970 até os dias atuais, e estão muito atrás das quantidades disponibilizadas nas grandes cidades mundiais. As metas de implantação de novos corredores de ônibus não foram cumpridas e não receberam os recursos do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) presente no PDE, e há ainda pouco incentivo ao transporte coletivo, especialmente nesta revisão do Plano, e isto se deve ainda ao privilégio dado ao uso do carro e dos veículos movidos a combustíveis fósseis. Por exemplo, o prefeito inseriu a possibilidade de utilizar os recursos do Fundurb para o recapeamento de vias que são focados em uso de carros e transportes com caminhões e ônibus a diesel.

A influência de qualquer plano diretor para a melhoria da mobilidade nas grandes cidades é enorme, para isso basta ver a importância dada à verticalização dada no entorno desses eixos, mas falta vontade política, planejamento e recursos para novas linhas de metrô e para corredores de ônibus. Esses sistemas deveriam ser um dos pilares do planejamento urbano moderno, considerando de forma integrada as necessidades de mobilidade e do grau de verticalização possível no entorno das infraestruturas de transportes.

Ao lado dos eixos de infraestrutura verde e azul e da necessidade de descentralização da gestão urbana no interior das cidades, os sistemas de transportes urbanos são fundamentais para redução de viagens e aumento de economias e empregos nos bairros. São Paulo tem 32 subprefeituras, algumas delas com mais de 600 mil habitantes, porém sem atividades econômicas e sem transportes e com insuficiência de eixos de mobilidade. Para exemplificar, a zona sul de São Paulo, uma das mais populosas da cidade, apresenta um funil para sua conexão para acessar as demais regiões da cidade devido à insuficiência de infraestrutura viária e de sistema de transportes. Bastou uma parada de energia no sistema de trens existente para a única linha que interliga a zona sul com o centro da cidade no final de junho de 2023, para que cerca de três milhões de pessoas não chegassem a seus empregos, majoritariamente situados no centro expandido. O mesmo ocorre com a única linha de metrô (linha 5) que vai somente até barros intermediários da zona sul.

E tudo isso ocorre apesar de haver diretrizes socioambientais muito avançadas no PDE 2014 de São Paulo. Mas, pela ausência de compromissos públicos de governo e de metas articuladas e mensuráveis, as diretrizes de habitação, meio ambiente, resiliência e adaptação climática, territórios de interesse cultural, descentralização da gestão municipal e elaboração de planos de bairro por subprefeituras acabaram não sendo aplicadas com o mesmo interesse e atenção nesses quase dez anos de aplicação do PDE, e a prioridade tem sido dada às políticas de produção de produtos dirigidos à classes de média e de alta renda de interesse para o mercado imobiliário e financeiro nacional e global.

Particularmente, os excessos de verticalização concedidos no entorno dos sistemas de transporte de massa e de mobilidade, sem estudos de capacidade de transporte com o uso de modelagens considerando o transporte e uso do solo, conhecidas entre os especialistas, podem causar sobrecargas nos eixos de mobilidade, e por outro lado a ampliação das vagas de garagens nos apartamentos e unidades nos eixos de transporte prejudica o modelo de redução e desestímulo ao uso do carro na cidade.

Esses excessos poderão gerar deseconomias e externalidades negativas, pela falta de estudos ambientais voltados a ampliar a resiliência para diminuir a vulnerabilidade, garantir maior permeabilidade e drenagens dimensionadas adequadamente, entre outras questões. Outro aspecto importante é a compatibilidade da verticalização com a capacidade suporte dos sistemas de transportes. Todos estes aspectos colocam em risco a sustentabilidade ambiental e climática da cidade, e não trazem de fato os benefícios sociais que são os objetivos originais do Plano Diretor Estratégico.

O objetivo central de ampliar a produção de unidades de habitação popular junto aos eixos de mobilidade, que era a justificativa à verticalização, foi subvertido no estímulo a imóveis de alto padrão que atendem aos objetivos do mercado imobiliário e financeiro internacional. Essas disfunções e distorções foram diagnosticadas pelas próprias áreas técnicas da prefeitura e por instituições de pesquisa como o Laboratório de Cidades da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Essas distorções ocorreram entre 2014 e 2023, em especial nestes lugares privilegiados do ponto de vista da presença de sistemas de mobilidade urbana e de autorização para verticalização. Não há sinais de que essas distorções tenham sido eliminadas pela revisão do Plano Diretor Estratégico, que infelizmente reforçou especialmente os aspectos negativos e a serem corrigidos.

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