A guerra cultural pela defesa da ciência precisa de soldados

Por Hernan Chaimovich, Professor Emérito do Instituto de Química da USP e ex-presidente do CNPq

 24/06/2022 - Publicado há 2 anos
Hernan Chaimovich – Foto: IEA/ USP

 

Escrevo este artigo pois cientistas brasileiros, no País e no exterior, estimulam estudantes para sair do Brasil porque a atual guerra cultural, que inclui o ataque à ciência, parece estar perdida. O País hoje, a partir das ações do governo federal, também estimula a expulsão de pessoas que queiram se dedicar, aqui, a fazer ciência.

Porém, ao ler o plano de pesquisa de um aluno que pleiteia uma bolsa de iniciação científica, me deparei com um projeto que poderia ser apresentado a qualquer departamento de área semelhante em uma universidade de ponta no mundo. Para mim, esta é uma amostra de que fazer ciência de fronteira no País é uma atitude necessária nesta guerra cultural que não está, ainda, perdida.

Acabar com a criação autóctone de ciência é elemento substantivo do projeto do Poder Executivo brasileiro. Este plano é apoiado conscientemente por parte do Poder Legislativo e, racional ou ingenuamente, por dezenas de milhões de compatriotas. Parte da sociedade, porém, ciente da importância da ciência, se opõe a este desmonte de um sistema de apoio construído há décadas. A destruição desse sistema integra uma concepção de mundo, e constitui uma verdadeira guerra cultural.

Cientistas brasileiros continuam, teimosamente, criando ciência em condições cada dia mais precárias, e é mister se perguntar por quê. Para encaminhar este diálogo, frente a esta aparente contradição/sacrifício, é necessário analisar sumariamente quem eles são e os motivos que levam à criação de ciência no País. Este exercício se coloca aqui em condições concretas, isto é hoje, no Brasil, e na Presidência do sr. Jair Messias Bolsonaro.

Qualquer análise de avaliação de universidades no mundo mostra que as universidades brasileiras que aparecem na listagem são públicas, com uma ou outra exceção. É também verdade que, das centenas das universidades no Brasil, poucas dezenas figuram entre as mais bem avaliadas no mundo.

Projetos para aumentar a presença de universidades públicas no conjunto das melhores do mundo inexistem, pois poderia parecer um desejo daqueles que, no imaginário deste projeto de desmonte, habitam suas torres de marfim. Projetos estratégicos nessa direção claramente não poderiam constituir alvo de interesse deste governo nem sequer se a economia estivesse num patamar melhor. A qualidade e quantidade de pesquisa têm um peso significativo nas avaliações de universidades. Os dados de sistemas de indexação de pesquisa mostram que, com exceção de alguns institutos de pesquisa também públicos, trabalhos com autores brasileiros provêm na sua grande maioria de universidades públicas.

Escapa ao alvo deste artigo descrever os impactos intelectuais, econômicos e sociais da pesquisa feita por pesquisadores brasileiros. Basta dizer, para exemplificar, que o Brasil não seria o grande exportador de proteína animal e vegetal, elemento central na produção global de minérios, um dos poucos exportadores de aviões, grande produtor de petróleo em águas profundas, país com a matriz energética mais sustentável do mundo, e tantas outras façanhas alcançadas nas últimas décadas sem a ciência produzida aqui, em universidades e institutos de pesquisa públicos. Se a esses poucos exemplos se adiciona o SUS e a produção nacional de vacinas – feitos também alcançados pelo esforço e a criatividade de cientistas brasileiros -, temos um quadro sucinto da importância da ciência autóctone para este país. Tudo isto parece fugir do universo conhecido dos membros do atual governo e seus asseclas, mas esse é assunto para outro artigo.

Quem são os soldados que nestes tempos de guerra cultural teimam em manter a criação de ciência, apesar da deterioração das condições objetivas e das pressões ideológicas que insistem no desmonte do sistema de ciência e tecnologia no Brasil? Como resistem à pressão por expulsão de cérebros existente hoje?

A Ciência, especialmente, mas não somente, nas áreas experimentais, é um esforço de criação coletiva. Grupos formados por mestres e discípulos, em contato com outros grupos, exercem trabalho coletivo para desvendar problemas, fundamentais ou aplicados, usando o método científico. Tanto os maduros mestres como os jovens estudantes são cientistas, com maior ou menor experiência, criatividade, contribuição de ideias disruptivas e capacidade de olhar o mundo e ver, onde todo mundo já olhou, fenômenos novos. Compreender esse universo é essencial para entender de que maneira se formula uma nova hipótese, como se resolve um problema de fabricação ou como se aprimora a cura de uma doença.

Os mestres e estudantes que sobrevivem como cientistas no Brasil estão guiados por um intenso compromisso duplo: estes soldados, na guerra cultural contra a ciência, são defensores não só da ciência, mas também de seu país.


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