A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas se manifesta em prol do cessar-fogo e do fim do massacre em Gaza

Por Adma Fadul Muhana e Everaldo de Oliveira Andrade, professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

 08/03/2024 - Publicado há 2 meses
Adma Fadul Muhana – Foto: IPTV USP
Everaldo de Oliveira Andrade – Foto: História/FFLCH
O Estado de São Paulo, como todo o Brasil, constituiu-se com a colaboração e a força de imigrantes e escravizados, juntamente com a população originária, autóctone das Américas. Talvez por isso tenhamos uma facilidade maior do que outros povos a acolher e nos sensibilizar com o que ocorre nas diversas partes do mundo. Cada um de nós tem um ascendente que veio de algum lugar exterior e isso reverbera em nossas atitudes. Em ordem alfabética (para não hierarquizar!) temos descendentes de alemães, angolanos, árabes, armênios, bolivianos, chineses, coreanos, congoleses, espanhóis, gregos, haitianos, italianos, japoneses, judeus, libaneses, moçambicanos, palestinos, paraguaios, portugueses, russos, tupis, tupinambás – e muitos outros.

Apesar da violência, do racismo e da pobreza da sociedade, os brasileiros descendentes dessas etnias e povos se orgulham por conviver em paz, e, só recentemente, diferenças físicas, culturais ou políticas entre eles pôde se traduzir em uma declarada hostilidade, diante da qual tem reagido com firmeza a tradição democrática do País, institucionalizada em sua Constituição.

É nesse sentido que entendemos o quanto o massacre na Faixa de Gaza tem afetado tantos de nós, e quantos de nós vibraram, no início da guerra, em outubro de 2023, com o resgate de brasileiros que se encontravam em Gaza. E também entendemos a recente comparação altissonante do presidente Lula, ao equivaler massacres indiscriminados como inaceitáveis para o sentimento humanitário. Não é à toa que, excetuando setores nacionais subservientes a um pensamento de extrema direita, encarnado na figura do primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nenhum organismo ou personalidade estrangeira ousou censurar, ou mesmo contradizer, a declaração brasileira.

A Universidade de São Paulo, principal universidade da América Latina, não se mantém alheia nem passiva aos acontecimentos mundiais. No interior dela, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – sua origem e seu centro – sempre tem se posicionado de maneira crítica e colaborativa com a sociedade, manifestando e exigindo que os princípios éticos se superponham a interesses de qualquer outra ordem. A violência brutal do Estado de Israel sobre os palestinos, cujos territórios e habitações foram espoliados por aquele, com a utilização de armas proibidas pelo direito internacional, como a privação de alimentos, água, cuidados médicos e sono, sem consideração a idade ou gênero, fere os princípios em que se baseiam a antropologia, as ciências sociais, a política, a geografia, as literaturas, a filosofia e a história.

Por essas razões, a Congregação da FFLCH foi mais uma vez fiel a seus valores e aprovou por unanimidade (com três abstenções) dois importantes documentos: uma Moção em repúdio ao massacre em Gaza e uma Manifestação em prol da paz e do fim do massacre em curso na Faixa de Gaza.

A Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, reunida em 22 de fevereiro de 2024, vem a público anunciar o seu mais veemente repúdio ao massacre em curso na Faixa de Gaza. Repudiamos com igual veemência a morte de civis israelenses no ataque do Hamas de 7 de outubro. Declaramos que constitui uma obrigação ética e moral, compatível com a tradição humanista da nossa faculdade, denunciar o horror dessa guerra. Silenciar seria falhar perante um momento tão grave da História. Clamamos pelo fim imediato do genocídio em Gaza e convocamos todos os setores da Universidade a se posicionarem no mesmo sentido.

A moção (acima) tem um caráter geral, de repúdio e convocação para que os setores da Universidade de São Paulo não se mantenham apáticos, num momento em que, além das milhares de vidas perdidas, foram destruídas escolas, universidades, salas de aula, laboratórios, edifícios administrativos e residenciais e tantos bens arqueológicos, patrimônios da humanidade, na Faixa de Gaza.

A manifestação, por sua vez, tem um caráter mais específico. Levando em consideração a inutilidade de tantos protestos ao redor do mundo – incluindo denúncias de cidadãos israelenses e de manifestantes de origem judaica e não judaica –, em prol de uma mudança na atuação das Forças Armadas, colonos e políticos de Israel, a Congregação da FFLCH entende que só ações concretas de toda a comunidade internacional podem impedir a continuidade deste que já é considerado o mais cruel genocídio do século 21.

Numa manifestação de claro apoio ao Estado Palestino, a faculdade solicita à Reitoria da Universidade que defenda a instalação de um Palestine Corner na Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (Aucani), uma vez que são os corners espaços representativos de nacionalidades, promovendo o diálogo cultural entre alunos e professores estrangeiros na Universidade de São Paulo, essencial para o intercâmbio acadêmico. O pedido decorre do fato de que, apesar de ter sido solicitado um corner para a Palestina, este não foi autorizado até a data de hoje, muito embora existam corners de outras nações, como Coreia, França, Índia, Irlanda e Israel. Certamente, a Congregação julga que toda ação na defesa da paz e da justiça é significativa e tem a esperança de que, como em outras ocasiões, a manifestação da FFLCH possa ser adotada por demais faculdades e institutos da USP.

Manifestação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Em prol da paz e do fim do massacre em curso na Faixa de Gaza

Independentemente das causas remotas (a ocupação dos territórios palestinos à revelia das resoluções 242 e 338 do CS/ONU) e causas recentes (o condenável ataque do grupo palestino Hamas a soldados e civis em Israel), é injustificável – sob qualquer ponto de vista do Direito e dos valores humanos – o massacre que Israel vêm perpetrando aos palestinos desde o dia 8 de outubro de 2023.

Sob o pretexto de exterminar o Hamas como meio de autodefesa, em quatro meses de guerra, as Forças Armadas de Israel já assassinaram mais de 27.500 mil palestinos, a maior parte deles crianças e mulheres, deixando 68 mil feridos e mais de sete mil ainda desaparecidos sob os escombros, na data em que se escreve esse texto.

Desde então, Israel tem bombardeado hospitais e aprisionado médicos e enfermeiros, impedindo deliberadamente o cuidado para com amputados e doentes; dos 36 hospitais antes existentes em Gaza, apenas quatro funcionam, muito parcialmente. O exército israelense também tem mirado jornalistas que divulgam essa tragédia, com o que 117 jornalistas já perderam a vida em missão na Cisjordânia e em Gaza. Cerca de 80% das residências da Faixa foram destruídas e mais de 2 milhões de palestinos estão hoje ao desabrigo, sem água, comida, ou medicamentos, ameaçados de morte por inanição.

Apesar disso, com a aquiescência dos Estados Unidos e governos europeus, o Estado de Israel tem impedido a entrada de ajuda humanitária para os palestinos, surdo aos protestos de diversos organismos internacionais, como a ONU, a Unesco, o Unicef e a OMS. São esses organismos, ainda, que denunciam como crimes de guerra o ataque indiscriminado de Israel a escolas, universidades, igrejas, mesquitas e abrigos para refugiados, bem como a destruição dos lugares de memória e identidade do povo palestino, como a Igreja Grega Ortodoxa de São Porfirio (séc. 5); o balneário otomano Hamam al-Samra (séc. 16); a mesquita de Al-Sayid Hashim e a Grande Mesquita Omari – erguida sobre um antigo templo filisteu da idade de ferro, anterior à própria Bíblia.

Estas são as razões pelas quais a África do Sul, apoiada por cerca de mil organizações mundiais, incluindo o governo brasileiro, apresentou em 29 de dezembro de 2023 ao Tribunal Internacional de Justiça (órgão judicial da ONU) uma acusação de genocídio por parte de Israel contra o povo palestino, a qual, embora aceita pelo Tribunal, em nada alterou a violência contra Gaza. A acusação considera que os atos supracitados “têm a intenção de provocar a destruição de uma parte substancial do grupo nacional, racial e étnico palestino”.

Detentores de uma tradição de defesa dos direitos humanos, da paz e do respeito às diversas religiões, gêneros, etnias e nacionalidades, nós, docentes e discentes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, vimos nos unir às vozes de todos aqueles dos mais diversos países que vêm se indignando contra essa que é uma tragédia humanitária sem par.

Sabemos que a mobilização da sociedade civil é essencial para interromper abusos de violência contra populações vulneráveis. Por isso, no que concerne à nossa atuação acadêmica, não aceitamos nos manter indiferentes a essa situação e solicitamos à Reitoria que reveja sua incompreensível posição de negar o pedido de instalação de um Palestine Corner para representar o Estado Palestino na Universidade de São Paulo. Parece-nos incompreensível, uma vez que a Palestina é um Estado reconhecido pelo governo brasileiro, do mesmo modo que o Estado de Israel, ao qual foi concedido um Israel Corner na nossa Universidade. Se se nega a autorização de funcionamento de um Palestine Corner, que se suspenda, por paridade, a instalação do Israel Corner. É o mínimo de justiça que podemos solicitar, em meio a uma tão injusta guerra.

Texto aprovado pela Congregação da FFLCH na reunião de 22 de fevereiro de 2024

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