A crise da covid-19 e a metáfora do tsunami

Por Adriana Marotti de Mello e Alvair Silveira Torres Junior, professores da FEA-USP

 13/05/2020 - Publicado há 4 anos
Adriana Marotti de Mello – Foto: FEA/USP
Alvair Silveira Torres Junior – Foto: Arquivo pessoal
Eventos raros que provocam alto impacto em nossas vidas têm sido denominados como eventos “cisne negro” por estudiosos da tomada de decisão sob condições de incerteza. O pesquisador Nicholas Taleb (2008) tornou popular a metáfora quando comparou a ocorrência de eventos improváveis na sociedade com a ocorrência menos frequente e pouco observável dos cisnes negros na natureza. Ambos são raros e pouco observados, mas existem, são reais. O problema é que esquecemos deles. O cisne negro é uma alusão simbólica aos eventos inesperados, mas que estão à espreita de emergir e provocar drásticas mudanças.

Uma análise apressada poderia fazer-nos classificar a atual pandemia da covid-19 como um evento de cisne negro, porém, a frequência com a qual epidemias têm assolado a humanidade somente neste século – H1N1, influenza, Sars, Mers, ebola – nos conduz mais à metáfora do tsunami, evento natural de origem sísmica.

Tsunamis ocorrem em intervalos relativamente longos, sendo percebidos no cotidiano com as características de evento único, mas que na realidade possuem uma certa previsibilidade, especialmente para aqueles com conhecimento do assunto, familiarizados com modelos teóricos para sua compreensão. O próprio Taleb distingue estes eventos raros, porém esperados, dos cisnes negros, chamando-os de “eventos cisne cinza”. É o caso das epidemias. Elas são difíceis de prever quando virão, qual a virulência do patógeno, mas os epidemiologistas e virologistas sabem que elas chegarão, e conseguem até calcular os riscos de se tornarem uma pandemia. Em uma palestra em 2015, que viralizou agora em 2020, Bill Gates advertia que o mundo não estaria preparado para uma pandemia.

O desafio colocado pelos eventos “cisne cinza” para pesquisadores em diferentes áreas de conhecimento seria o de como lidar, no curto prazo, com os efeitos devastadores da pandemia, ao mesmo tempo em que precisamos pensar como estruturar a sociedade e prepará-la para enfrentar o próximo evento. Na área de gestão, um dos maiores desafios é o efeito desses eventos no gerenciamento de cadeias de suprimento. Como garantir a continuidade nas operações de setores vitais, como as cadeias de saúde, alimentação, energia?

Usar a metáfora do tsunami para pensar nos efeitos da pandemia sobre as cadeias de suprimento também serve para chamar atenção sobre a característica de seus efeitos serem magnificados no curto prazo, mas eles continuarem e perdurarem por longo período devido a alterações estruturais nas cadeias. Como uma onda destruidora eles seguem, de tal sorte que os efeitos deletérios e disfuncionais continuam por muitos anos depois do evento original, caso medidas de reestruturação não sejam tomadas.

A alusão ao tsunami em cadeias de suprimentos foi realizada pela primeira vez por Akkermans e Van Wassenhove (2018), autores que advertiram para a necessidade de a gestão de operações lançar mão de indicadores de atenção, e ações de prevenção, quanto aos eventos de baixa probabilidade e alto impacto, captados tanto externa quanto internamente às cadeias de suprimento. Todavia, um fato novo agora se coloca com a amplitude de impacto da covid-19, muito além de uma ou algumas cadeias de suprimento de empresas, atingindo praticamente todos os fluxos de mercadorias e serviços do planeta, sem distinção de setor, região ou país.

Ao nos debruçarmos empiricamente sobre as reações públicas aos impactos econômicos vistos nas interrupções ou expressivas reduções nos fluxos de mercadorias e serviços, identificamos uma reação de espera do retorno à normalidade, ao quadro anterior, numa manifestação do viés cognitivo de quem não se abre aos sinais de que podemos estar diante de um “novo normal”. Há exigência de uma nova estrutura para outra realidade no curto prazo, em que será preciso, por exemplo, conviver com a necessidade de menor mobilidade das pessoas enquanto não houver uma vacina (estimativas otimistas, de 18 meses e pessimistas, de 36 meses). Tornar as cadeias de suprimento mais robustas, resilientes ao tsunami, quanto diminuir o impacto negativo sobre pessoas e a vida social e econômica.

Em que pese a enorme dimensão do problema visto de fora, numa perspectiva em que vemos os negócios parados, demandas caindo, restrições de mobilidade e incerteza quanto ao fim deste cenário, é preciso estabelecer uma perspectiva interna, de gerenciamento, através da qual podemos entender os detalhes do fenômeno, propor alternativas de curto prazo e caminhar para a reestruturação no futuro.

Agilidade, adaptabilidade e alinhamento são fatores urgentes a serem resgatados para o redesenho das cadeias de suprimentos tendo em vista o novo cenário. O pesquisador e professor de gestão de operações Hau Lee, em artigo seminal de 2004, já advertia da necessidade de incluirmos estes fatores na avaliação e desenho das cadeias de suprimento globais. Ele já reclamava, naquele artigo publicado na Harvard Business Review, sobre o fato de empresas não tratarem de planos de contingência pensados para eventos cisne negro ou cinza, embora eles estivessem aumentando sua frequência. O professor Lee lembrava do ataque terrorista em Nova York em 2001, da greve dos trabalhadores portuários na Califórnia em 2002 e da epidemia de Sars na Ásia em 2003, eventos no curto espaço de três anos no início deste século, que interromperam as cadeias de suprimentos de muitas empresas.

Passados quase 20 anos desse texto, questões importantes e pertinentes merecem ser discutidas: por que gestores de negócios e agentes públicos em todo o mundo não se prepararam? Sucessivas crises não trouxeram aprendizado sobre como lidar com elas? Certamente, há natural dificuldade do ser humano em lidar com situações futuras e incertas. Outra questão que gostaríamos de discutir aqui é como os modelos de gestão, atualmente quase que exclusivamente focados em eficiência e aumento de produtividade, com resultados rápidos e de curto prazo, podem passar a colaborar para o problema da resiliência em cadeias de suprimentos. Façamos um exercício de aplicação daquelas medidas preconizadas por Lee em nosso cenário de covid-19 com especial atenção ao Brasil.

Agilidade

Esse fator trata das medidas de resposta rápida às mudanças de curto prazo na demanda ou oferta, e a capacidade de lidar com interrupções externas à cadeia afetando seu fluxo interno. Não há melhor definição que se encaixe ao que aconteceu nos últimos meses. Observa-se dificuldades na obtenção de máscaras, respiradores, reagentes, EPIs e equipamentos médicos de forma geral. Em todo o mundo, nas últimas duas décadas, as cadeias de produção tornaram-se mais globalizadas, em muitos casos com grande volume de produção de insumos concentrado na China. No cenário atual de restrição da mobilidade internacional e aumento muita rápido na demanda, essa decisão se mostra agora pouco acertada do ponto de vista da agilidade. O esforço para produzir localmente insumos médicos esbarra em uma série de problemas de curto prazo.

De imediato, dotar a cadeia de suprimentos de insumos médicos de agilidade significaria promover o fluxo de informações entre os atuais fornecedores nacionais e internacionais com o parque industrial brasileiro para localizar colaborações em recursos, o que implicaria coordenação de diferentes atores – papel que o governo, através de políticas efetivas de coordenação com diferentes agentes, deveria fazer.

Em uma perspectiva de mais médio prazo, se pensarmos em equipamentos, uma estratégia seria desenvolver relacionamentos colaborativos com fornecedores internacionais que disponibilizem apoio técnico e acesso aos desenhos e especificações de equipamentos. Recentemente, no esforço de aumentar a produção de respiradores no Brasil, os fabricantes nacionais detectaram um gargalo na produção de uma válvula importada. A demanda pela válvula é global e exige como resposta ágil a busca de soluções colaborativas com os fornecedores globais:

  • esforços de engenharia para a substituição do componente ou material específico por similar;
  • desenvolver em conjunto processos alternativos para ampliar a capacidade produtiva do componente em outros locais;
  • abrir as especificações e formas de processo atuais para comunidades técnicas colaborarem com os esforços.

A agilidade está vinculada com a capacidade de empreender ações rápidas de âmbito colaborativo entre as cadeias de suprimento, portanto apenas uma liderança com postura de coordenação aberta e transparente pode efetivamente dar conta disso, somando-se ao segundo aspecto essencial para a reestruturação das cadeias: o alinhamento.

Alinhamento

Esse segundo fator trata do compartilhamento de responsabilidades, conhecimentos e esforços para o atingimento dos objetivos comuns e específicos dos agentes da cadeia de suprimentos.

Se os interesses forem conflituosos entre as organizações da cadeia, as ações não convergirão para o atendimento das necessidades e maximização do desempenho. No caso da crise da covid-19, a amplitude do problema exige liderança neste alinhamento, e os governos naturalmente devem assumir esse papel desde a decisão de curto prazo de isolamento social, até a identificação e redirecionamento de recursos produtivos para as novas demandas, que permitirão relativo relaxamento das medidas de contenção social.

A liderança coordenadora das cadeias – que geralmente é a empresa focal, com mais poder de barganha em uma cadeia, ou o governo, nos momentos de crise humanitária – deve promover o incentivo à troca de conhecimento e estabelecer a divisão clara de funções, tarefas e responsabilidades de forma a não desperdiçar recursos ou redundância de esforços. A cadeia de suprimentos de máscaras, por exemplo, terá seus esforços de aumentar a oferta ampliados, na medida em que eles forem coordenados e alinhados entre os agentes. Desenhar a máscara pensando em materiais distintos, obter o material disponível, produzir e tratar o tecido, montar e costurar, higienizar, embalar, distribuir, transportar entre unidades, enfim, cada etapa atribuída a distintos agentes conforme suas competências e habilidades, formando uma cadeia emergencial e alinhada que realize o suprimento extra agora necessário.

Esse alinhamento significaria abrir mão de vantagens que a assimetria de informações traz para algumas empresas da cadeia – por exemplo, quem “controla” a cadeia geralmente não compartilha toda a informação disponível, visando a conseguir vantagens em negociações de preços/volumes de compras. Abrir mão dessa vantagem significa abrir mão de parte da lucratividade, dividindo-a por toda a cadeia – o que pode ser prejudicial em indicadores de curto prazo, mas benéfico para toda a cadeia e, consequentemente, à sociedade.

Adaptabilidade

Adaptabilidade é a capacidade de adequar o desenho da cadeia de suprimentos para incorporar mudanças estruturais do mercado e da sociedade. Ir além das mudanças emergenciais que a agilidade busca no enfrentamento da pandemia, e alcançar modificações que sustentem estratégias e negócios no período de recuperação após a crise.

Algumas dessas modificações já foram tomadas pelos agentes na medida em que as condições já estavam dadas pela flexibilidade propiciada por determinados recursos disponíveis, em especial os meios digitais. É o caso da rápida adaptação de atividades para o teletrabalho, mudança que deve ser aprofundada e aperfeiçoada, dotando as cadeias de suprimentos e negócios de maior resiliência frente aos efeitos deste e outros tsunamis.

Por outro lado, equipamentos médicos precisam ser readaptados em seus projetos para incorporar processos e componentes padronizados que permitam adotar a mesma estratégia já utilizada pela indústria automotiva ou informática, cujos produtos concebidos em plataformas padronizadas permitem sua produção em número maior de plantas mundo afora.

  • design de produtos médicos devem seguir regras internacionais em que as equipes de desenvolvimento do produto calculem e deixem transparentes as implicações do projeto para a cadeia de suprimentos;
  • buscar projetos em que os produtos compartilhem componentes de maior capacidade de fabricação;
  • altos graus de padronização dos processos de manufatura de tal forma que, com poucas alterações de engenharia, a produção se adapte rapidamente às cadeias de suprimentos em diferentes localidades.

Em todos os casos, evidencia-se a necessidade de mudar o modelo de gestão atual, focado exclusivamente em redução de custos e aumento de lucratividade. As estratégias voltadas a agilidade, alinhamento e adaptabilidade significam incorporar à gestão indicadores mais amplos de desempenho, que levem em conta o impacto social da interrupção ou falta de prontidão em atender ao mercado em casos de eventos de alto impacto.

Outra mudança estrutural em vista do tsunami pandêmico é a diminuição da vantagem dos países asiáticos, sobretudo a China, em concentrar a produção de certos insumos e produtos, notadamente os de segurança e saúde. Pelos motivos de facilitar a agilidade e o alinhamento dos fornecimentos futuros com maior resiliência aos impactos, é preciso redirecioná-los para produções locais, restabelecendo cadeias de suprimento regionais em uma estratégia urgente de recomposição produtiva. Estruturar cadeias de suprimentos locais para produção de reagentes, máscaras, respiradores, equipamentos e insumos médicos em geral no território nacional.

Em suma, construir cadeias de suprimentos resilientes aos “tsunamis” futuros demandaria uma série de mudanças nos paradigmas de gestão até aqui consolidados. Por exemplo, em cadeias críticas – como de insumos e equipamentos de saúde – fica evidente a necessidade de uma coordenação externa, de agentes públicos nacionais e internacionais.

Por fim, as diretrizes aqui discutidas para redesenho das cadeias de suprimento, frente ao tsunami global, cobrem uma série de aspectos a ser aprofundados, debatidos e colocados em ação pela comunidade acadêmica e de profissionais, mas cujo sucesso somente será logrado com a designação de líderes que de fato coloquem acima de seus interesses particulares a noção de responsabilidade por toda a cadeia, atitude que não se encontrará em nenhuma tecnologia ou fórmula, mas no comportamento de administradores convictos do seu papel de protagonistas e projetistas de um novo mundo em que a ciência e a humanidade devem triunfar.

 


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