a.C. / d.C. acadêmico: a pandemia faz a USP (se) repensar(?)

Por José A. Rabi, Sergio A. David e Murilo M. Baesso, professores da Faculdade de Zootecnia e Engenharia de Alimentos (FZEA) da USP

 01/07/2021 - Publicado há 3 anos
José Antonio Rabi – Foto: FZEA
Sergio Adriani David – Foto: FZEA
Murilo Mesquita Baesso – Foto: FZEA
Ao longo de sua história, a Universidade de São Paulo com frequência se deparou com a necessidade de operar em ambientes instáveis, perturbadores e imprevisíveis, enfrentando instabilidades políticas, crises financeiras e tendências disruptivas, como a transformação digital e a globalização. Já foi chamada a responder por maior democratização ao acesso de estudantes e, recentemente, foi instada a justificar-se perante a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Mas nada se compara à covid-19.

Em março de 2020, a pandemia tomou de assalto alunos, docentes, funcionários e quem estivesse ligado à ou frequentasse a USP, afetando o cotidiano acadêmico de todos os seus campi e impondo desafios sem precedentes, cujo escopo e escala têm múltiplas dimensões. De um dia para o outro, fomos todos recolhidos aos respectivos domicílios e, desde então, sequestrados por várias dúvidas no porvir. Como certo, temos apenas o sentimento de que a maior tragédia epidemiológica de nossa recente história tem instigado vários momentos de reflexão e poderá trazer mudanças estruturais.

Naquilo que podemos cunhar “antes-covid / depois-covid acadêmico”, a seguinte pergunta paira no ar: como será nossa rotina em nosso eventual retorno? Na medida em que especulações borbulham no atual momento, tomamos aqui a liberdade em abusar deste expediente.

O ensino (sobretudo de graduação) é nossa maior atividade-fim e, consequentemente, alvo-mor de especulações. Para docentes que tiveram a oportunidade de participar de treinamentos ou workshops relacionados ao ensino remoto, comentários postados no chat estampavam a miríade de opiniões, anseios e dificuldades para ministrar disciplinas na modalidade não presencial. Seria um déjà vu da inércia que anos atrás havia (ainda há?) em abandonar notas de aulas em folhas de papel (amareladas pelo tempo) e migrar para a (outrora relutante) combinação multimídia + PowerPoint? Enquanto discutimos até que ponto nós, docentes, devemos desenvolver habilidades de youtuber, atributos como “síncrono” e “assíncrono” passaram a povoar nosso jargão pedagógico.

Após o atual “período probatório em ensino remoto”, as cargas horárias das disciplinas ficarão inalteradas quando retomadas presencialmente no “novo normal”? Ou, questionando de outra forma: será repensada a divisão entre créditos-aula e créditos-trabalho nas disciplinas que ainda não fizeram tal redistribuição? Isso sem falar nos conteúdos programáticos das disciplinas pois, juntos com as cargas horárias, compõem as duas faces de uma mesma moeda. Em última instância, estaríamos diante de uma janela de oportunidade para reavaliarmos projetos político-pedagógicos de nossos cursos? Aliás, essa janela se estenderá para novas modalidades de pós-graduação, tais como o doutorado profissional?

Será que, de fato, a crise que inadvertidamente se colocou pela escalada da pandemia gerou uma oportunidade para maior desenvolvimento da educação on-line? Se a resposta a essa questão for afirmativa, tal desenvolvimento pode contribuir para o fortalecimento e a excelência do processo ensino-aprendizagem. Não se trata, necessariamente, de pensar a educação on-line como alternativa, mas, sim, como complementaridade.

As orientações acadêmicas também foram severamente impactadas, sobretudo aquelas relacionadas a pesquisas profundamente apoiadas em atividades presenciais. Por sua vez, congressos, conferências e simpósios que adotaram a modalidade on-line tiveram que conciliar suas programações para os diferentes fusos horários dos participantes (apresentadores e ouvintes). Postagens de arquivos dos trabalhos e/ou de vídeos gravados pelos autores (para visualização assíncrona e posterior debate síncrono) substituíram as versáteis poster sessions e, claro, os famigerados coffee breaks. E para mediar os debatedores, chairmen passaram a ter a participação (benéfica?) do chat (de novo ele…) para envio de perguntas aos expositores.

No que tange à pesquisa, a USP está envolvida numa miríade de projetos relacionados à covid-19, incluindo desenvolvimento de vacinas e medicamentos, epidemiologia, impactos socioeconômicos da doença, entre outras direta ou indiretamente relacionadas à pandemia. Tais pesquisas podem contribuir para não apenas demonstrar, como também fortalecer a interconexão entre a USP e a sociedade que a financia.

Quanto aos descritores, o termo “nano” foi “mega” suplantado por “covid-19”, que passou a permear títulos e palavras-chaves em publicações nas diferentes áreas do conhecimento. Trata-se de um convite para que abandonemos nossas torres de marfim e consolidemos a interdisciplinaridade na pesquisa. Em recente publicação de nossa autoria, vislumbramos para a epidemiologia matemática uma “simbiose conceitual” não apenas entre as ciências exatas e da saúde, mas também envolvendo as ciências sociais, a fim de compor o arcabouço fenomenológico para modelar a disseminação de doenças infectocontagiosas.

Dentre as atividades acadêmicas afetadas pela pandemia, o binômio “cultura & extensão” pode emergir como grande beneficiário no “novo normal”. Na medida em que a modalidade remota possui alcance (inter)nacional e usufrui de horários flexíveis, cursos de especialização a distância são alternativas para suprir necessidades de atualização de alunos com limitações de ordem profissional e/ou geográfica, bem como daqueles com dificuldades em conciliar tempo para estudar e trabalhar.

Por fim (mas não menos afetadas), atividades de gestão tornaram-se reféns de plataformas como Google Meet ou similares. Usamos aqui o termo “reféns” na medida em que bugs de protocolos podem derrubar reuniões on-line (até mesmo os links de membros de uma Congregação inteira!). E tivemos que adaptar nosso jargão: “para abstenções ou votos contrários, usem o chat, por favor” (olha ele aqui de novo!). Outrossim, a modalidade on-line “contaminou” concursos públicos, fazendo com que membros da banca passassem a refletir sobre o que doravante deve ser avaliado nos candidatos. E tomara que as conexões de membros e/ou candidatos não caiam durante a realização dos concursos!

Alguém já parou para se perguntar como teria sido se a pandemia de covid-19 tivesse irrompido décadas atrás, em uma época sem internet? O atual momento de comoção planetária é um convite ímpar para quebras de paradigmas e de estruturas (sobretudo as arcaicas!), pois tão cedo não queremos outra pandemia, queremos?

O novo milênio vai efetivamente começar em breve e possivelmente estamos diante de um importante ponto de inflexão. Nesse contexto, a USP deverá buscar respostas ousadas para aumentar sua sustentabilidade e relevância, visando ao avanço socioeconômico do País e a um sistema acadêmico pautado no futuro pós-covid-19. Caberá à USP repensar novas possibilidades de ensino-aprendizagem, reexaminar a maneira de conduzir suas pesquisas e como estabelecer seu modus operandi, chamando para si a árdua – porém necessária – tarefa de redefinir as rígidas burocracias pré-covid-19 que a caracterizam.


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