O Marquês de Pombal e a transição de governo no Brasil

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 06/12/2022 - Publicado há 1 ano

Em 1755 a cidade de Lisboa era uma espécie de capital do mundo. A corte de Dom José I era tão rica quanto a do rei francês Luís XV e Portugal rivalizava com a Espanha, pois se aproveitava da inovação de encontrar os caminhos para a Índia, para a África e para o Brasil. A Lisboa de então era uma cidade extremamente religiosa e, claro, tinha um grande número de igrejas. Em 31 de outubro de 1755, a população estava preparada para o feriado do Dia de Todos os Santos. Dom José I e a família decidiram passar o feriado fora da cidade. Foram à missa logo cedo no dia primeiro e depois deixaram o Palácio Real, um palácio repleto de obras de arte, incluindo uma biblioteca com mais de 70 mil volumes. Nele estavam também os documentos originais sobre os descobrimentos portugueses.

Por volta das 9h30 deste fatídico dia 1º de novembro, a população de Portugal foi sacudida por um terremoto de grandes proporções. Não existia ainda a ciência da sismologia naquela época, mas estima-se hoje que o tremor deva ter sido de 8, 7 ou 9 na escala Richter. Até hoje não se sabe ao certo o ponto exato do epicentro, mas já se chegou a um acordo de que foi muito próximo a Lisboa, no mar, a cerca de 250 km. Segundo apurou-se após o terremoto, a sucessão de tremores durou mais de duas horas, uma eternidade quando se passa por um terremoto, nesse caso suficiente para causar um nível de destruição brutal e pânico em várias cidades de Portugal. Por causa das missas e do feriado santo, havia velas acesas por todo lado, além de muitos fogões a lenha preparando comida. Com o desabamento das estruturas, contendo muita madeira, o número de incêndios foi enorme. Não bastasse a destruição pelos tremores extremos, cerca de 90 minutos depois do início deles, um maremoto atingiu a cidade. Conta-se que as ondas excediam cinco metros de altura e mesmo provocando uma grande inundação na parte baixa da cidade, a água não conseguiu apagar os incêndios. Numa cidade com cerca de 300 mil habitantes, estimou-se que 90 mil morreram. O resultado foi de completo caos e a sensação da população deve ter sido a de um apocalipse. Todo um sistema urbano funcionando a pleno vapor acabou-se num único dia.

O rei e sua família escaparam e era preciso fazer alguma coisa. Nesse momento surgiu um personagem que iria mudar completamente a história de Portugal, o sr. Sebastião José de Carvalho e Melo, que depois ficou conhecido como o Marquês de Pombal. Dom José I confiava muito em Sebastião e o incumbiu das providências pós-terremoto e da reconstrução da cidade de Lisboa.

Quando Sebastião José se deparou com a tarefa de atuar logo após um evento com este nível de caos, mostrou-se como um líder extremamente competente e eficiente. Ele agiu rápido e determinou medidas que evitassem a propagação de doenças, dando conta de enterrar rapidamente os mortos. Organizou um sistema de segurança para evitar um aumento exponencial nos saques.

Ao mesmo tempo, Sebastião José tomou outras duas medidas que podem ser consideradas como cruciais para o que seria o futuro de Portugal. A primeira medida foi o Inquérito, um questionário de 13 perguntas que foi enviado já em 26 de janeiro de 1756 para arcebispos e bispos para que fosse respondido por todos os padres de Portugal. O Inquérito contém perguntas sobre detalhes a respeito do terremoto, tais como o que foi destruído, qual a altura das ondas durante o maremoto, quantas pessoas morreram, como a municipalidade respondeu ao desastre etc. O Inquérito foi uma clara demonstração de uma visão científica de Sebastião José. Ao invés de considerar o terremoto/maremoto como um castigo divino apenas, o futuro Marquês de Pombal conseguiu extrair informações valiosas que iriam embasar suas decisões. Deu-se início aí ao que hoje é a área científica da sismologia.

A segunda medida foram as Providências. Usando as respostas do Inquérito, Sebastião José reuniu um grupo de ministros e juntos produziram um documento com 241 medidas sobre minimização de riscos de epidemias, limpeza de entulho, segurança, continuidade das práticas religiosas, aspectos judiciais, fiscais e financeiros. Sebastião José ainda nomeou o engenheiro-mor Manuel da Maia para elaborar um plano de reconstrução de Lisboa. Uma das ideias foi a de incluir uma “gaiola” de madeira que dá flexibilidade aos edifícios e faz com que suportem muito melhor possíveis tremores.

Dois aspectos são notáveis nessa história de como o Marquês de Pombal e Dom José I lidaram com o desastre e a reconstrução. O primeiro é a influência das ideias iluministas (estavam ativos na época polímatas iluministas importantes, como Voltaire e Immanuel Kant) que influenciavam Sebastião José, que, aliás, havia passado 11 anos de sua vida na Inglaterra. Logo após o terremoto, a primeira atitude – o Inquérito – foi uma ação altamente científica. Ele se preocupou em entender o fenômeno, não se submetendo somente à ideia de que o evento teria sido um castigo divino. O segundo aspecto notável foi o de conectar as respostas obtidas de forma científica com um conjunto de medidas que preparasse Lisboa para o futuro, ou seja, as Providências. Já em 1758 foi publicado o livro Memórias das Principais Providências que se deram no Terramoto que padeceu a Corte de Lisboa no ano de 1755. O original pode ser visto on-line na Biblioteca Nacional de Portugal.

Em 1º de novembro de 2022, o Brasil se encontrou numa situação análoga à de Lisboa na mesma data de 1755. As consequências de um fenômeno com potencial destruidor análogo a um terremoto, mas com a diferença que ocorreu ao longo de vários anos, necessita de medidas como o Inquérito e as Providências tomadas pelo rei e por Sebastião José. De fato, a equipe do governo eleito aqui no Brasil rapidamente montou um grupo para definir as Providências. Ainda sabemos pouco sobre elas, mas uma diferença em relação àquelas propostas pelo Marquês de Pombal já transparece: não há, até o momento, qualquer menção séria e forte sobre a importância de reconstruir o sistema de ciência e tecnologia brasileiro. Portanto, parece faltar uma parte importante nas “Providências” que o Brasil tenta produzir. Ela se refere justamente à parte iluminista, que foi tão visionária por Sebastião José e Dom José I após o terremoto de 1755.

Ao longo de cerca de quatro décadas a partir da década de 1980, o Brasil democrático construiu um sistema de ciência e tecnologia que atingiu nível mundial. Entramos no ranking dos maiores produtores de ciência do planeta, em muitos casos estando entre os cinco primeiros mais produtivos. A quantidade de conhecimento produzido aqui é invejável. Porém, os efeitos do “terremoto” político gradativo dos últimos anos sobre esse sistema vêm provocando uma ameaça terrível. Nos últimos quatro anos chegamos a quase zero de financiamento e os grupos de pesquisa, que têm alguma autonomia, estão entrando em estado de agonia. A fuga de cérebros já começou e estamos por um triz de não termos mais bolsas para nossos jovens, financiamento para projetos e colapso das universidades federais. Se a destruição total se concretizar, o custo para retornar ao estado que estamos será enorme. Não falo aqui somente do custo financeiro, mas do custo de não termos gente capaz de pensar nos problemas e garantir que os erros de agora não se propagem para o futuro. Foi assim que pensaram Sebastião José e o rei Dom José I há mais de 250 anos.

Realinhar o sistema de ciência e tecnologia brasileiro é crucial. É provavelmente a providência mais importante para os brasileiros do futuro. É importante porque os problemas imediatos não serão resolvidos com medidas paliativas. Serão sim resolvidos com medidas que garantam que no futuro estejamos preparados para enfrentar terremotos da mesma magnitude e sairmos ilesos.


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