Inteligência, uma propriedade biológica – Cognição no mundo microscópico

Por Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da USP

 10/07/2023 - Publicado há 10 meses

Ao ler a palavra inteligência, a primeira coisa que nos vem à mente é o cérebro humano. Mas a espécie Homo sapiens é recente na evolução biológica, o que nos leva a deduzir que os processos que levaram à inteligência que hoje apreciamos nos seres humanos deve ter começado há muito tempo. Para que apreciemos o que é realmente inteligência, podemos estender o termo tornando a sua abrangência bem mais ampla. Numa série de artigos, abordarei a inteligência desde os organismos mais simples como os microrganismos até os mais complexos, como plantas e animais. Na sequência, abordarei a inteligência coletiva, que emerge das interações entre indivíduos que não precisam necessariamente pertencer à espécie humana.

Como o termo inteligência tem um certo paralelismo com o termo consciência, podendo-se até pensar que as duas coisas são uma única característica vista de dois ângulos diferentes, abordarei também o conceito de consciência em organismos vivos, numa tentativa de convencer o leitor de que esta característica também surgiu bem mais cedo na evolução do que imaginamos.

Uma das definições mais inclusivas que existem é a de inteligência como a capacidade adaptativa de um organismo, proposta por David Stenhouse em 1974. Eu a chamo de inclusiva porque permite encaixar todos os seres vivos, já que as capacidades adaptativas ocorrem em todos os organismos vivos e é um elemento fundamental do processo de evolução biológica.

A fim de apreciar melhor os diferentes tipos de inteligência dos organismos vivos, podemos decompor inteligência em quatro características essenciais:

1) capacidade de armazenar informação (ou memória);
2) capacidade de processar informação;
3) capacidade de “se perceber” como um indivíduo e
4) capacidade de decidir.

Para ser inteligente por essas características, um organismo não precisa necessariamente apresentar todas elas, pelo menos na mesma intensidade. Até uma máquina inventada pelo homem pode se encaixar nesses conceitos e ser chamada de inteligente. Mas a Inteligência Artificial ainda não satisfaz a condição 3, pelo menos por enquanto.

Vou usar a biologia para discutir as quatro características da inteligência. Mas meu objetivo não é descrever casos de inteligência, mas usar alguns como exemplo para salientar que a inteligência vai muito além do que acontece no cérebro humano.

Primeiro examinemos o processamento de informação. Ele ocorre nos seres mais simples. Um vírus, uma das mais simples “formas de vida”, apresenta em sua estrutura informação armazenada que lhe permite interagir com o ambiente. Nestes seres, há mecanismos internos cujo programa informacional, quando executado, lhes permitem interferir com o funcionamento da célula de um outro organismo mais complexo, ou seja, do hospedeiro que este vírus infecta. A informação no vírus está armazenada em seu genoma e pode ser replicada quando seu código se apodera do maquinário celular de seu hospedeiro. Há, portanto, uma espécie de memória que permanece e caracteriza aquele ser.

Se seguirmos a definição de que a inteligência se estende além de somente possuir um cérebro (ou mesmo um sistema nervoso), a inteligência do vírus estaria naquilo que está “escrito” no seu material genético, seja DNA ou RNA. A capacidade de efetuar processos decisórios está também no vírus, mas de forma indireta. Como os vírus “sequestram” os mecanismos celulares de outro ser, a programação informacional daqueles precisa ter as instruções exatas para que tal “sequestro” obtenha sucesso. Se isto ocorrer, significa que o sucesso é adaptativo e pela definição que dei acima, teríamos de considerar os vírus seres inteligentes.

Já a capacidade de atuar como um indivíduo está no fato de que unidades de seres (no nosso exemplo uma cápsula de vírus em particular) possam atuar diferentemente de outras unidades, dependendo das condições que encontram. Estamos acostumados a pensar que somos indivíduos porque temos livre-arbítrio, isto é, podemos escolher nossas decisões. Mas na maioria dos casos não é bem assim. Tomamos as decisões possíveis dentro de um quadro de condições que encontramos. Os vírus, sem cérebros, são muito mais dependentes do que nós das instruções em seu material genético e de suas interações com o ambiente que encontram. Mesmo assim, sabemos que eles podem apresentar mutações adaptativas e como populações, podem apresentar uma espécie de “inteligência de massa”, à qual voltarei reiteradamente nesta série.

Conforme avançamos na árvore da vida, vemos que múltiplas formas de organismos vivos evoluíram com tipos de inteligência diferentes, sempre baseadas nos quatro princípios nomeados acima e tendo-os em proporções diferentes. No ramo dos microrganismos o aumento de complexidade torna os processos decisórios proporcionalmente mais relevantes.

Já se comprovou que bactérias, como a Escherichia coli, possuem nano-cérebros. Bactérias preenchem os quatro requisitos da inteligência. Armazenam informação, processam-nas, se reconhecem como indivíduos e tomam decisões.

Os nano-cérebros bacterianos foram muito bem caracterizados na década de 1990. Em um dos polos da célula bacteriana há proteínas transmembrânicas que atravessam a membrana e a parede da célula, cujas porções extracelulares funcionam como sensores de alimento no ambiente. Essas proteínas indicam à célula (o indivíduo bacteriano) se há carboidratos ou lipídeos no ambiente e ao “sentir” a presença de alimento, o indivíduo usará seus flagelos (caudas que ficam do outro lado da célula) para “nadar” em direção à comida. São vários os motores flagelares que têm de funcionar de forma coordenada para que uma dada célula nade numa única direção. Se um dos motores for revertido, a célula bacteriana se perde. Até aí podemos dizer que há informação, pois as proteínas do nano-cérebro estão codificadas no DNA bacteriano, assim como as proteínas dos flagelos.

Mas não é só isso. As proteínas do nano-cérebro têm também uma porção interna que, dentro das células, ficam submetidas a um processo de fosforilação (um sistema muito conhecido de ativação e desativação de proteínas) que é codificado. O padrão de fosforilação é diferente em cada indivíduo e funciona como uma memória para a bactéria. Através dessas fosforilações, a memória irá indicar àquele indivíduo, se necessário, elementos do que aconteceu no passado e melhorar o desempenho para encontrar alimento. Já se demonstrou que este é claramente um sistema de armazenamento de informação e, mais que isso, que estas reações bioquímicas até lembram o que acontece na memória dos mamíferos, entre eles, nós.

Com este nível de conhecimento, já se pode afirmar que a inteligência – considerando os quatro elementos nomeados acima – já existe claramente desde as bactérias. Elas armazenam informação (em seu DNA), processam a informação (produzindo as proteínas do nano-cérebro e dos flagelos), possuem memória e a usam-na para tomar decisões (para onde nadar na direção dos alimentos). Já se sabe que as fosforilações são características de cada célula o que nos indica que cada uma delas é um indivíduo e reage de forma específica no processo de tomada de decisão.

E a relação entre inteligência e consciência? Podemos acrescer aos quatro pontos o fato de que biologicamente inteligência significa ter consciência? Quando falamos em animais, especialmente no Homo sapiens, a questão da existência ou não de consciência nos seres vivos pode ser tratada de forma estendida, assim como tratei o termo inteligência usando a definição de Stenhouse. No caso da consciência, o tratamento dado ao assunto pelo neurofisiologista Antonio Damásio é bastante útil. Ele define dois tipos básicos de consciência: a central e a ampliada. Segundo Damásio, “a consciência central é um fenômeno biológico simples”. Ela não permite ter noção de passado ou futuro, mas somente o aqui e agora. Portanto, a consciência central não depende da memória. Já a consciência ampliada necessita de memória para existir. Ela pode chegar ao ponto que Damásio chama de self (Eu) autobiográfico. Um organismo que possua esta propriedade, precisa ter noção da sua história de vida e essas informações (armazenadas como memórias) interferem nas suas decisões, criando assim um sistema complexo de integração de informações que se baseia no trinômio passado-presente-futuro.

Nos exemplos que vimos acima dos vírus e bactérias, há claramente elementos de inteligência em ambos e, no caso das bactérias, há tanto inteligência como elementos de consciência. Já que elas têm uma memória que lhes permite “lembrar” do passado e alterar o seu futuro. Garanto que só fui olhar o maravilhoso livro de Merlin Sheldrake sobre fungos depois de escrever as quatro características que listo aqui. Mas está lá no livro, claramente, na defesa que Sheldrake faz de que a inteligência, se vista de outra forma, é muito mais do que o que acontece no cérebro humano.

Usei aqui somente propriedades gerais e uma única espécie de bactéria para representar o que chamamos de microrganismos. Há muito, muito mais do que isso nessa esfera da vida terrestre. Só de imaginar o que mais pode existir, ficamos com a impressão de que há muito mais seres inteligentes e consciências que vivem no nosso entorno e dentro de nós. A inteligência é muito mais do que o cérebro humano. Ela está em toda a biosfera. Veremos mais evidências disso nos próximos artigos desta série.

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