Há 30 anos, nascia a URV, moeda virtual que possibilitou o lançamento do até hoje estável real

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 01/03/2024 - Publicado há 2 meses

Só quem viveu a inflação desenfreada que dominava o Brasil pode sentir a diferença. Neste 1° de março, registram-se os 30 anos do lançamento da Unidade Real de Valor, a URV, moeda contábil que abriria o caminho para o lançamento do real, moeda que subsiste até hoje, transformando a inflação alta — mais de 80% ao mês – que infernizava a vida dos brasileiros, em uma triste lembrança do passado.

A inflação alta, no início da década de 1990, incomodava desde os governos militares. No governo de José Sarney — eleito ainda pelo Colégio Eleitoral como vice na chapa de Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar posse –, houve três tentativas de combate à inflação desenfreada: dois Planos Cruzados e um Plano Verão que fizeram água rapidamente. Depois, veio o inesperado governo Collor – candidato que, correndo por fora, ganhou a eleição presidencial –, que tentou resolver o problema sequestrando o dinheiro dos brasileiros, deixando-os com apenas 50 mil cruzados novos (a moeda da época), e adotando algumas outras medidas que também naufragaram.

Itamar Franco, o vice que substituiu Collor, tentou combater a inflação com terapias ortodoxas e políticos de seu relacionamento mais próximo, mas sem sucesso. Forçado a substituir o amigo Elizeu Resende no cargo de ministro da Fazenda, o então presidente convidou para ocupar o posto o senador Fernando Henrique Cardoso, que estava no Ministério das Relações Exteriores, em consequência de seu trabalho para desobstruir obstáculos para a posse de Itamar Franco, depois do impeachment de Collor.

Quando Cardoso toma posse, a inflação brasileira já caminhava celeremente para as alturas, apontando para os 3.000% ao ano. A população convivia com o fantasma de um perigoso desarranjo da economia brasileira, que sobrevivia graças à resiliência alimentada pelo velho expediente da correção monetária, que permitia ao País continuar navegando. Sua permanência, contudo, certamente prejudicaria a consolidação da democracia brasileira, reconquistada dos militares havia pouco menos de dez anos. Para se ter uma ideia da situação, no começo da década de 1990, fui editor de Economia da revista Veja e editei várias capas seguidas sobre o tema inflação.

A partir da posse de Cardoso, começa o trabalho de construção do Plano Real, cuja etapa inicial foi o lançamento da URV. Cardoso reuniu no Ministério da Fazenda uma plêiade de economistas que, entre outras experiências práticas e teóricas, haviam participado das discussões ou da implantação dos planos anti-inflacionários anteriores, especialmente os Planos Cruzados, com nomes de destaque como os economistas Pedro Malan, Edmar Bacha, Pérsio Arida, Gustavo Franco, entre outros.

A URV foi uma moeda imaginária que possibilitou o posterior lançamento do real. Curiosamente, uma de suas fontes de inspiração foi o combate à hiperinflação alemã no ano de 1923, consequência, entre outras, das pesadas reparações impostas à derrotada Alemanha pelos vencedores da Primeira Guerra Mundial entre 1914 e 1918.

A URV tinha paridade com o dólar (1 URV era igual a 1 dólar) e absorvia a variação dos preços das mercadorias em cruzeiros reais, a moeda inflacionada da época. Como lembra a jornalista Lu Aiko Otta, no Valor Investe do jornal Valor Econômico, “a URV foi inspirada em um paper que havia sido escrito dez anos antes, em 1984, pelos economistas Pérsio Arida e André Lara Resende. Eles propuseram um plano de estabilização que ficou conhecido como ‘Larida’. A ideia era romper a dinâmica de alta de preços criando um sistema com duas moedas: a antiga, inflacionada, e uma nova, que teria seu valor corrigido diariamente. No Plano Real, a moeda corrigida foi a URV, inicialmente, e depois o real.”

A URV embutia uma manobra que visava amortecer a inflação em cruzeiros reais, que era a moeda então vigente. Em 1° de março de 1993, seu primeiro dia de validade, uma URV equivalia a CR$ 647,50, mas em 30 junho, seu último dia de validade, já valia CR$ 2.750 reais. Essa ampla variação permitiu a absorção dos aumentos de preços de serviços e produtos ocorridos durante esses três meses, de modo que, com a entrada em vigor do real, em 1º de junho, todos os preços estivessem alinhados por cima, sem nenhuma defasagem, e passassem a ser denominados em reais. Na época, pude assistir a reuniões de representantes do Ministério da Fazenda com um importante setor industrial da economia brasileira, nas quais essa sistemática era explicada e debatida. Essas reuniões se repetiram com todos os setores importantes da economia brasileira, de modo que nenhum deles foi pego de surpresa quando da entrada em vigor do real.

A URV, como vimos, pavimentou o caminho para o real, que sufocou a desenfreada inflação que assolava o País e alavancou a candidatura de Cardoso à Presidência da República. Havia sido ultrapassado um problema que prejudicava a economia brasileira desde meados dos anos 1970, sem aparente solução. Seu sucesso possibilitou a aprovação da reeleição de presidentes da República pelo Congresso, da qual o primeiro beneficiado foi o próprio Fernando Henrique Cardoso. Hoje, a possibilidade de reeleição de um presidente da República para um segundo mandato já é bastante discutida e criticada. Foram beneficiados por ela os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. O último presidente, Jair Bolsonaro, fracassou na tentativa de reeleição, abrindo as portas para um terceiro mandato de Lula.

O sucesso da URV, que abriu o caminho para o lançamento, três meses depois, do real, marcou o início da superação de um problema que se tornara crônico na sociedade brasileira. O real, em vigor até hoje, possibilita que a inflação se mantenha, desde então, em níveis civilizados, 3%, 4%, 5%, 6% anuais, com apenas alguns poucos anos em que ultrapassou 10%.

Mas vencer a inflação não é o único desafio de um país. São enormes os que o Brasil ainda enfrenta, basta acompanhar atentamente o noticiário para sentir que não faltam dificuldades a superar em quase todas as áreas da sociedade brasileira. Várias áreas precisam de ideias tão boas como a do Plano Real.

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