Chore por ti, Argentina, um país com problemas antigos e recorrentes

Por Luiz Roberto Serrano, jornalista e coordenador editorial da Superintendência de Comunicação Social (SCS) da USP

 25/04/2023 - Publicado há 1 ano

Era 1955, no “chaque”* de meu pai, o argentino Juan Manuel, em Santos, onde ficava sua aparelhagem de radioamador, ele, eu e sua irmã mais velha, a uruguaia Balbina, escutávamos discursos de Juan Domingo Perón, em seus dias finais de governo em Buenos Aires, palavras mixadas aos ruídos típicos de transmissões por ondas curtas. O rádio NC240D, de longa distância, não escapava da estática que prejudicava a transmissão. “Pueblo Argentino, yorsxrxrs…

Perón, viúvo desde 1952 da carismática Evita, que hipnotizava e encantava “los cabecitas negras”, não teve como resistir aos conservadores, entre eles “la dinastia lechera”, como dizia meu pai, e aos militares e caiu.

Fugiu para o Paraguai, passou pelo Panamá, Venezuela e República Dominicana e se instalou em Madri, na Espanha da ditadura franquista, para de lá reger o movimento peronista, que ao longo do tempo criou inúmeras facções, à esquerda e à direita, da “triple A” à guerrilha de “los Montoneros”.

Seguiram-se governos civis instáveis e duros períodos regidos por militares, que comandavam regimes repressivos e fracassados, até que estes últimos, diante da instabilidade permanente do país, conformaram-se com a volta de Perón à Casa Rosada, na esperança que sua presença desse algum rumo ao país. Durou pouco.

Os militares voltaram à Casa Rosada, com sua máquina repressiva, mas sucumbiram à derrota na famigerada Guerra das Malvinas, idealizada como um golpe de legitimação do governo para alimentar esperanças nacionalistas, aplastado pela reação imediata da conservadora primeira-ministra da longínqua e colonizadora Inglaterra, Margareth Thatcher. Os então chefes militares saíram de cena, acabando condenados à prisão por uma justiça civil rediviva.

A desestruturação institucional do país, provocada por tantas instabilidades, prejudicou todos os seguintes ocupantes civis da Casa Rosada.

Raul Alfonsín, da Unión Cívica Radical (UCR), de centro, renunciou meses antes do fim de seu mandato, pois convivia com uma inflação descontrolada. Fernando de la Rúa, também da UCR, foi outro que abandonou o cargo antes do fim de seu mandato.

O Partido Justicialista, peronista, teve vários breves presidentes seguidos com mandatos curtos. O único longevo, na época, foi Carlos Menem e seu ministro Domingos Cavalo, da Fazenda, que patrocinou a dolarização da moeda argentina, que parecia ser, mas não foi, solução para o país. O posterior e também longevo casal Néstor e Cristina Kirchner, recuperou em parte a economia, mas não o suficiente para permanecer na Casa Rosada.

A Proposta Republicana, do conservador Cambiemos, de Mauricio Macri, veio na sequência, mas sua derrota na tentativa de reeleição resultou na volta dos justicialistas – com Alberto Fernandez e Cristina Kirchner, esta apenas de vice-presidente, pois carrega inúmeros processos judiciais. Manipuladora do governo, já se vislumbrava que a convivência dos dois não daria certo. Tudo indica que não deu, pois Fernandez acabou de declarar que não concorrerá à reeleição, e há curiosidade sobre o que fará Kirchner, às voltas com as referidas questões judiciais.

Como pano de fundo dessas decisões, corre uma inflação cuja previsão anual já ultrapassou os 100%, uma situação muito difícil de conviver, especialmente para as camadas mais pobres que já representam 40% da população. O atual desembestar da inflação certamente impulsionou a decisão de Fernandez, que encabeça um governo muito contestado, inclusive nas hostes justicialistas. Só para se ter uma ideia da grandiosidade dos problemas, além da disparada da inflação, há, pelo menos, 17 tipos de câmbio atrelados ao dólar.

A imprensa argentina já especula sobre os possíveis candidatos à eleição neste final de ano, estando à frente nas pesquisas, no momento, Javier Millei, com cerca de 18 pontos, que defende ideias esdrúxulas, que já não deram certo no país, como a anteriormente fracassada dolarização.

O ex-presidente Mauricio Macri declarou que não concorrerá. Na esteira da desistência de Fernandez, surgem vários nomes entre os peronistas, entre eles o embaixador da Argentina no Brasil, Daniel Scioli. O quadro ficará mais claro após as Paso, as eleições primárias, simultâneas e abertas, que se realizam no meio do ano, à qual comparecem obrigatoriamente todos os partidos para definir seus candidatos.

A América Sul, onde atualmente predominam governos de esquerda – Brasil, Chile, Bolívia, Peru, Colômbia, Venezuela -, certamente acompanhará o pleito com enorme interesse. A atual esquerdista Argentina, mesmo em crise, é um membro importante dessa comunidade, influencia seu presente e futuro, e o resultado de seu pleito presidencial pesará na balança de poder da região.

* Chaque é uma expressão usada entre praticantes do radioamadorismo que designa o espaço onde são instalados os equipamentos utilizados na atividade.

_______________
(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.