Os pés da Barbie

Por Heloísa Buarque de Almeida, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 25/08/2023 - Publicado há 8 meses     Atualizado: 05/10/2023 as 17:11

Você sabia que, se uma jovem começa a usar saltos altos o tempo todo, seus pés não conseguirão mais ficar descalços, parecendo com a cena do filme Barbie? Não vi o novo filme ainda, mas vou lembrar aqui o que a Barbie representou para algumas gerações e que ainda faz parte da construção imagética da boneca, assim como a miríade de subprodutos a ela ligados, com a predominância da cor rosa.

Na minha infância, nos anos 1970, Barbie era uma boneca caríssima e importada que eu – de classe média e branca, mesmo vivendo uma situação confortável – não podia comprar. Depois de alguns anos, ela passou a ser feita no Brasil e tornou-se um pouco mais acessível, mas ainda assim era bem mais cara que outras bonecas. A Susi era a “nossa” boneca – brasileira, da Estrela, nem tão magra, nem tão esbelta, nem tinha os seios tão demarcados. E não usava saltos altos.

Pessoalmente, eu não gostava de brincar de bonecas, e nunca liguei muito para nenhuma das duas, porque tinha em mente outras brincadeiras. Me recordo bem que, ao longo dos anos, a Barbie foi se tornando o desejo das meninas mais novas, além de produzir a representação do que foi se tornando um padrão de beleza: loira, magra, esbelta, jovem. Mais do que isso, os brinquedos eram uma forma de entrada no mundo do consumo. Estar na moda, comprar roupas, trocar de roupas, estar sempre maquiada e de saltos altos, cabelos louros e lisos ao vento, e para dar um ar mais “moderno”, com ares de uma mulher que tem uma carreira e um trabalho do qual se orgulhar, Barbie passou a ter profissões. Se a empresa que a produziu passou a fazer muitas Barbies com várias profissões, foi porque as mulheres de camadas médias e altas foram ganhando outros espaços e a empresa teve que atualizar um pouco suas representações de feminilidade para não ficar “fora de moda”.

A escolha dos brinquedos não é um ato inofensivo. Dar bonecas apenas para as meninas não é algo que se possa reproduzir sem nenhuma reflexão, especialmente quando algum menino também quer brincar de boneca. Os brinquedos são modelos de ação e de comportamento e fazem parte das construções de gênero da sociedade em que vivemos.

Há, decerto, brincadeiras sem gêneros demarcados: correr, esconde-esconde, balanços e gangorras, jogos de vários tipos, a correria no parquinho. Mas conforme a sociedade de consumo se desenvolveu no país, nos anos 1980 e 1990, os brinquedos industrializados ficaram cada vez mais marcados por gênero: basta entrar numa loja de brinquedos e ver a divisão entre um lado predominantemente cor de rosa e outro lado muito mais colorido, demarcando os brinquedos a partir do gênero.

Se neste filme novo (pois há outros), a Barbie ganhou emprego e passou a questionar a desigualdade entre homens e mulheres, pelo que li e pelo que contam do filme, há outras diferenças e desigualdades que a Barbie nunca vai enfrentar: de classe, raça, sexualidade, geração. Usar saltos altos foi por muito tempo um sinal de distinção de classe, que também acabava por limitar a mobilidade das mulheres, e que impõe um tipo de habilidade e uso corporal que é insustentável para alguém que tenha que caminhar muito para ir e vir do trabalho, que trabalhe em uma fábrica ou na roça. A feminilidade da Barbie vem junto com um padrão de classe e raça. E se mais recentemente apareceram Barbies negras, ou com outros sinais de diversidade, como bonecas com deficiência física, deve ter sido por pressão social, pela percepção das empresas – no Brasil, muito tardia e recente – de que pessoas negras também são consumidoras.

O filme novo pode ser divertido e questionar até algumas desigualdades de gênero, mas continua sendo um produto de sociedade de consumo, para fazer vender mais e mais bonecas e um sem-número de outros produtos em torno do filme – modas, a insuportável predominância do cor-de-rosa nos brinquedos e nos quartos das meninas. Relembro que o rosa não era assim predominante nos anos 1970, nas infâncias daquela época. Vale lembrar também que, bem antes desse filme que agora faz sucesso, a Disney fez uma coleção de filmes de produção barata e desenhos de qualidade ruim dos anos 1990 e 2000 protagonizados pela Barbie, sempre a loira, fazendo fadinhas, ou dançando o quebra nozes. Quero destacar que a indústria cultural poderosa vem a reboque dos movimentos sociais, sempre um tanto atrasada, pois não quer chocar e nem ser rejeitada pelos mais conservadores. Assim, não inova quase nada, porque nem tem a pretensão de inovar. O que ela faz, e muito bem, é vender produtos e outros bens de consumo ligados aos filmes.

Talvez eu veja o filme, e me divirta com ele – dizem que, mais que tudo, é uma comédia pastelão. No entanto, não posso esquecer que Barbie faz parte de um amplo sistema de produção e reprodução da binariedade de gênero, dos padrões de beleza marcados por distinções de raça, classe, sexualidade, geração. A verdadeira boneca deverá estar sempre de saltos altos. E de cima dos saltos altos, ela não tem compromisso nenhum com justiça social.

Observação: O artigo foi corrigido em 5/10/23 pois, o contrário do que dizia o texto publicado originalmente, a Susi não foi sempre branca. Segundo informações fornecidas pela pesquisadora Fabiana Ribeiro, “em 1973, são lançadas Susi negras em duas versões, uma mais retinta e outra menos. Em 1974, outra versão da Susi negra é lançada. Em 1970, já existem versões de mulheres latinas, como a Susi Baiana e a Mexicana, com tons de peles não brancas.”
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