A ciência pela história, episódio 7 – Técnicas, indústria e vida social na Idade Média

Por Gildo Magalhães, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 26/09/2024 - Publicado há 3 meses

O som de máquinas em fábricas invade as casas da cidade. Onde estamos? Nalguma cidade de hoje? Na Europa do século 19? Na Europa sim, mas na Idade Média.

Para defrontar o aparente anacronismo, devemos notar que o período histórico europeu comumente denominado de Idade Média (geralmente indo do século 5 ao século 15) foi repleto de inovações técnicas, que lentamente foram assimiladas, aperfeiçoadas e disseminadas, especialmente do século 11 ao século 13.

Três grandes pilares que sustentam essa afirmação são os moinhos, as forjas e as catedrais. Falaremos dos dois primeiros, mas há uma série enorme de outros desenvolvimentos a compor um quadro social e econômico que ainda permanece ausente dos livros escolares e desconhecido pelo público em geral. Uma pequena e diversificada lista desses avanços inclui itens da vida cotidiana, como as casas bancárias, os óculos, relógios com mecanismo de escape, botões de roupa, garfos na mesa, carrinho de mão para construção, vidros de janela. Sem a capacitação técnica representada por implementos desse tipo, seria difícil entender os empreendimentos ligados à penetração europeia comercial e colonizadora nos demais continentes a partir do século 16.

Na agricultura do período medieval temos um exemplo da interação desses elementos técnicos com a sociedade. As florestas da Europa do Norte foram dando lugar a campos de plantação de grãos, graças ao uso de arados com alma metálica a partir do século 7 e ao uso intensivo de ferramentas de ferro, como enxadas, picaretas, pás e machados. A difusão de ferraduras e de um novo sistema de arrear cavalos de tração no século 9 colaboraram também no esforço de uma agricultura mais intensiva e produtiva.

A multiplicação de propriedades agricultáveis exigiu a fabricação de uma quantidade muito maior de objetos de ferro. Para isso, foi primeiramente necessário utilizar mais intensamente as forjas “catalãs”, conhecidas desde a Antiguidade, para conseguir atingir temperaturas cada vez mais altas e fazer a redução química de volumes maiores de minério de ferro. O aumento de produção dos implementos agrícolas não poderia mais ser feito por ferreiros isolados, soprando ar por foles e trabalhando só com seus braços, a bigorna e martelo. A solução foi utilizar foles cada vez maiores, feitos costurando-se várias peles bovinas, e capazes de soprar ininterruptamente vários m³ de ar por minuto. Essa tarefa foi possível utilizando-se rodas de moinho, cujos eixos eram acoplados aos braços dos foles.

É importante lembrar que muitos desses avanços técnicos migraram para a Europa vindos principalmente da Ásia. Na China antiga, por exemplo, já eram empregados moinhos hidráulicos para soprar foles e desenvolver a metalurgia. A irrigação das plantações pela construção de canais e comportas também foi altamente desenvolvida na China e Sudeste Asiático, e praticada com intensidade pelos povos muçulmanos, também nos territórios conquistados após sua penetração na Europa. Se o moinho d’água já era conhecido desde a Antiguidade, assim como muitas das técnicas aqui mencionadas, cabe considerar que elas foram diligentemente assimiladas pelos europeus, inclusive nos mosteiros e abadias que se dedicavam a praticar e aperfeiçoar invenções nas suas terras. Aliás, os monges medievais eram reputados como hábeis técnicos, conhecidos por desenvolver a energia hidráulica e a metalurgia, e obtinham ganhos consideráveis com a produção e venda de frutos, legumes, vinhos, cervejas e lã, entre outros produtos.

Uma técnica decisivamente importante foi adicionada à produção agrícola de grãos a partir do século 8, na forma dos três campos de cultivo. A rotação de culturas permitiu ter duas colheitas de trigo por ano, além de aveia na primavera. Essa nova técnica foi maximizada graças à expansão no século 11 do uso da charrua, uma evolução do arado e dotada de rodas, que permitiu trabalhar terras pesadas e fazer sulcos com regularidade. Com o ganho de produtividade, foi possível alimentar mais pessoas, além de disponibilizar uma alimentação mais variada, e o aumento populacional decorrente se evidenciou com um relativo êxodo do campo e o crescimento das cidades; com isso, aumentaram as oportunidades para diversificação de empregos em profissões urbanas e uma maior mobilidade entre as classes sociais.

Na maior parte da Idade Média a força motriz dos moinhos provinha dos rios, embora em alguns lugares se usasse também a diferença das marés, antes da progressiva implantação de moinhos eólicos. O vento, ao contrário da água, tinha a vantagem de não ser propriedade particular de algum senhor.

A difusão dos moinhos movidos a água se intensificou a partir do século 6. As aplicações da movimentação das rodas d’água eram inúmeras, além da função de moer grãos e produzir farinha: impulsionar martelos para apisoar lã e plantas a serem transformadas em fibras para tecidos e para fiação de seda, movimentar teares, curtir couro, ativar foles para aquecer cubas e fabricar cerveja, fazer azeite, moldar chapas de cobre etc. Os acoplamentos de correias e engrenagens diretamente no eixo da roda d’água (mais fácil se esse eixo fosse horizontal), ou de algum modo movidos por esse eixo e o uso de bielas permitiam um movimento de vaivém, útil para acionar foles de forjas, como referido, ou para serrar tábuas, vigas e caibros a partir de troncos de árvore.

Muitas dessas funções foram retidas pelos moinhos até contemporaneamente. Na Inglaterra, por exemplo, Quarry Bank Mill, uma das principais tecelagens da região próxima a Manchester, usou uma centenária roda d’água ligada por uma árvore de correias e engrenagens a dezenas de teares durante todo o século 19, sem fazer uso de máquinas a vapor. E a roda d’água na serraria existente no Horto Florestal de Campos do Jordão (SP) produzia tábuas há não mais do que 30 anos atrás.

Quem mais se beneficiou dos avanços técnicos e industriais da Idade Média europeia foram os proprietários de terra (nobreza e clero), mas também deles se aproveitou a ascendente burguesia comercial e financeira. Já os trabalhadores tinham condições bastante variáveis — os mineiros tinham muitos privilégios, o que lhes permitia até recusar um salário considerado baixo, assim como os operários da construção civil; pelo contrário, os operários têxteis eram assalariados que viviam praticamente em um regime de servidão. Note-se que nos empreendimentos mais próximos de vilas e cidades, como na indústria têxtil, já havia uma elaborada divisão de trabalho, em que o encadeamento da produção não era para a produção em série, mas em geral para produção de partes em paralelo, que depois eram unidas para criar o produto final. De toda maneira essas fábricas poderiam ser de um tamanho respeitável, congregando o trabalho de algumas dezenas de pessoas.

O ímpeto industrializante e de desenvolvimento técnico sofreu um forte revés com a eclosão da Peste Negra e suas reincidências, a partir do século 13, seguidas de guerras cada vez mais intensas, de que são exemplos as Cruzadas e a Guerra dos Cem Anos. Esses incidentes levaram ondas de fome para uma sociedade dizimada e empobrecida, em que, juntamente com o aumento de tributos, a usura foi cada vez mais praticada com juros impagáveis, levando à perda de propriedades e à sua aquisição por aproveitadores.

Pode-se dizer que, apesar desses obstáculos, os elementos principais dos progressos técnicos e científicos referidos entram na conceituação da expressão algo ousada de uma “Revolução Industrial da Idade Média”, como fez o historiador Jean Gimpel. E foram esses elementos que permitiram à Europa continuar desenvolvendo o capitalismo, do qual uma nova onda industrializante se torna mais evidente nos séculos 18 e 19, evidenciando mais uma vez que não é possível pensar em crescimento do conhecimento de forma abrupta. O uso do termo “revolução” é sempre assunto para controvérsias em qualquer campo.

Voltando à pergunta inicial, os ruídos das atividades humanas de construção e funcionamento das indústrias deveriam ser bastante notórios para os habitantes das urbanizações e arredores naqueles tempos, dado o crescimento acelerado de moinhos, forjas e oficinas. Esses sons, entretanto, não eram exclusivamente vindos de humanos trabalhando, mas também de máquinas. Diversos registros literários daquela época atestam o matraquear de inúmeras manufaturas – além de se queixarem da poluição do ar e das águas (sim, já existia poluição!), decorrente dessas atividades.

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